Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Lucky

O último durão

por Francisco Russo

De todos os gêneros cinematográficos, talvez o faroeste seja aquele com signos mais escancarados. O território vasto e um tanto quanto inóspito, onde a bravura de um homem vale ouro, serviu de base para inúmeros filmes dirigidos por John Ford ou estrelados por John Wayne, seu ícone maior. Lucky, comandado pelo estreante John Carroll Lynch, é ao mesmo tempo uma homenagem ao Velho Oeste e, também, uma certa subversão aos ícones clássicos do gênero, no sentido de fugir de alguns estereótipos em torno do eterno durão.

Tamanha reverência surge logo na apresentação do longa-metragem, com o recorrente "Harry Dean Stanton is Lucky". A mistura entre personagem e intérprete não é apenas marketing, já que o filme assume escancaradamente características da persona pública do próprio Harry Dean Stanton. Mais ainda: há uma mórbida similaridade entre criador e criatura ao confrontá-los com a morte, no sentido do que foi vivido e da ausência de uma perspectiva longeva. O fato de Stanton ter falecido no mesmo mês de lançamento de Lucky, aos 91 anos - mesma idade do personagem -, amplifica ainda mais tal sensação. Trata-se de uma escolha certeira de elenco.

Entretanto, mais até do que simbolizar uma época tão marcante dos Estados Unidos - e do cinema -, Stanton entrega uma grande atuação, onde é essencial reparar nos detalhes. Se o semblante endurecido ressalta as dificuldades da vida, assim como a postura aponta um homem de personalidade forte que jamais foge de uma discussão, seu olhar também revela a fragilidade da solidão, ampliada pela consciência e o medo do ocaso iminente. Não por acaso, o hábil roteiro da dupla Logan Sparks e Drago Sumonja o cerca de coadjuvantes tão afáveis, não só para ressaltar seu lado endurecido mas, especialmente, de forma a revelar seu íntimo a partir de pequenos gestos. Assim é na visita que recebe em casa, assim é quando comparece a uma festa de aniversário, momentos em que a fragilidade de Stanton é escancarada de forma comovente.

Neste universo tão rude, chama também a atenção como a narrativa é conduzida de forma a desconstruir preconceitos em torno do próprio faroeste. É na menção a Liberace que o filme revela que há mais em Lucky do que o verniz ranzinza aponta, apresentando camadas de sensibilidade até então pouco perceptíveis. Da mesma forma, situações plantadas previamente ganham contornos fora do convencional, de forma a ressaltar que personagens como Lucky não são sinônimo de machismo ou xenofobia. Tudo de forma absolutamente natural e convincente, sem qualquer truque que destoe da ambientação já estabelecida. Ponto, mais uma vez, para os roteiristas.

Entretanto, nem só de Stanton e a ambientação em torno de si é feito Lucky. Aproveitando o parentesco, o diretor conta com a espirituosa participação do diretor David Lynch como ator, em uma subtrama hilária que, ao mesmo tempo, beira o nonsense e é absolutamente factível naquela cidade de fim de mundo - sem contar que, de imediato, remete às loucuras típicas de Twin Peaks.

Com uma bela fotografia que explora bem as paisagens desérticas, Lucky é um típico filme de personagem que se agiganta não só por uma grande atuação, mas também pela rudeza construída de forma a provocar uma certa reflexão entremeada a convicções tão bem estabelecidas. Harry Dean Stanton, no auge da carreira justamente em seu trabalho derradeiro, merecia ao menos uma indicação ao Oscar por este filme.

Filme visto na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2017.