Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
O Silêncio dos Outros

O dever de reparação

por Bruno Carmelo

Um homem de meia-idade caminha pelo bairro onde mora e aponta para um conjunto de apartamentos a alguns metros de distância: “Lá dentro vive o homem que me torturou três vezes”. A rua onde o personagem mora, inclusive, tem o nome de um militar que praticou a tortura durante a ditadura de Franco na Espanha. Este tipo de configuração social é possível graças à Lei da Anistia assinada no país, liberando os presos políticos, mas também perdoando todos os crimes humanitários cometidos pelos governantes da época. Um dos maiores torturadores espanhóis, inclusive, leva uma vida comum, correndo em maratonas e publicando fotos nas redes sociais.

The Silence of Others busca escancarar esta injustiça. De acordo com o discurso oficial, sustentado pelo presidente do governo espanhol, Mariana Rajoy, é melhor esquecer os fatos passados e se focar no futuro. Nada de “remexer nos ossos”; o que passou, passou. Ora, a facilidade com que as autoridades se eximem de responsabilidade é espantosa diante das dezenas de casos relatados nos documentários. Os diretores Almudena CarracedoRobert Bahar reúnem histórias de tortura, assassinatos, bebês roubados das mães logo após o parto e outras atrocidades cometidas em nome do combate ao “perigo comunista” – a desculpa preferida das democracias das Américas do Norte e do Sul há décadas.

Esteticamente, o filme assume riscos pelo fato de combinar uma quantidade muito distinta de materiais e recursos. Os cineastas misturam depoimentos para a câmera, material de arquivo, conversas das famílias das vítimas com advogados, narrativas explicativas em off, letreiros com datas e informações históricas, músicas comoventes, apropriação de obras de arte, nomes de ruas etc. A câmera não tem pudores de se aproximar nos rostos que choram, nem dar um zoom nas ossadas de desconhecidos, desenterradas pela comissão que investiga os crimes da ditadura. Existe uma ambição utópica, porém saudável de completude: o olhar dos diretores pretende estar em todos os lugares, com as pessoas afetadas direta ou indiretamente pelos crimes franquistas. A empatia é evidente.

O resultado se mostra bastante forte, tendo a vantagem de se assumir como filme-denúncia. The Silence of Others jamais pretende ser imparcial, ouvir os dois lados. Ele assume a postura de que os discursos oficiais já tiveram espaço o suficiente na mídia ao longo das décadas. Agora é preciso dar voz aos anônimos clamando por justiça. Por isso, o discurso é didático, na intenção de sensibilizar o público médio e talvez integrá-lo na luta pelo reconhecimento do direito das vítimas. Algumas formas de cinema militante convidam à reflexão, porém este documentário se encontra num passo anterior, concentrando-se na necessidade de informação. Carracedo e Bahar supõem que a maioria dos espanhóis ainda não sabe o que ocorreu, por isso a necessidade de um resgate pedagógico da História.

Apesar da multiplicidade de recursos, cada trecho é bem escolhido, montado de maneira eficaz e fluida. Os diretores ainda manifestam a coragem de incluir cenas difíceis como o depoimento de um dos principais torturadores à justiça, ou o momento exato em que uma mulher de 89 anos descobre a ossada de seu pai. O filme decide que, na impossibilidade prática de um debate baseado nos dados e na lógica, é preciso começar com o apelo à emoção. Como projeto informativo, de formato convencional, ele se sai surpreendentemente bem, expondo histórias dentro de um contexto, dando voz a figuras que o governo espanhol faz questão de silenciar, indo e voltando aos aspectos legais para fomentar cada passo do processo.

Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.