A vida sonhada dos artistas
por Bruno CarmeloNa introdução deste drama biográfico, o pintor Paul Gauguin (Vincent Cassel) é apresentado como o típico artista marginal: ele produz quadros que ninguém compra, passa as noites em cabarés, bebendo com os amigos, enquanto ignora a esposa e os vários filhos, a quem jamais demonstra afeto. Trata-se do ideal do artista perturbado, libertário e libertino, cuja genialidade é incompatível com as regras sociais. Gauguin não se encaixa na vida de funcionário, de marido, de pai de família. Por isso, ele parte à natureza bruta, mais especificamente ao Taiti, onde “não é preciso ter dinheiro, porque você pode caçar e se banhar no rio”, ele afirma.
A porta de entrada para o projeto do diretor Édouard Deluc é o fetiche, seja aquele do gênio excêntrico, seja o da natureza generosa, ou ainda o fetiche do bom selvagem. O espectador pode temer, com razão, que o drama adote este ponto de vista como uma utopia nostálgica. Felizmente, a partir do momento em que o pintor chega à Polinésia, a narrativa adquire uma força inesperada. Ao invés de o protagonista impor os e seus conhecimentos europeus ao local, ele é tragado pelo modo de vida das ilhas. Gauguin precisa aprender a língua, tem dificuldade para pescar, enfrenta doenças, precisa se habituar às configurações afetivas e amorosas dos polinésios. Não existe superioridade do pintor em relação aos locais: ele será sempre uma figura deslocada neste ambiente, por mais que produza as suas melhores telas durante a estadia.
O roteiro consegue fugir às principais armadilhas da biografia. Primeiro, ele não idealiza o seu protagonista, um tipo inconstante cujos ataques de raiva nem sempre se traduzem em ação, graças à atuação complexa de Cassel. O pintor escapa à trajetória do homem conquistador: sua esposa e musa Tehura (Tuhei Adams, excelente) é oferecida pelos pais da moça num acordo burocrático. Acima de tudo, o filme não aposta numa colagem acelerada das principais passagens da vida de Gauguin, como de costume nas biografias tradicionais. Estamos diante de um cenário de estagnação: o artista está doente do início ao fim, ele teme a infidelidade da esposa o tempo inteiro, enfrenta as mesmas dificuldades financeiras até sua morte. Sem a necessidade de criar transformações a cada cena, o filme encontra nuances, respiros, além de uma interessante construção psicológica.
As imagens de Gauguin - Viagem ao Taiti constituem um espetáculo à parte. Deluc não se priva de ostentar o “valor de produção”, ou seja, exibir o esplendor das paisagens locais, no entanto as cenas domésticas propiciam as composições mais inspiradas. A fotografia de Pierre Cottereau efetua um trabalho deslumbrante com luzes em interiores, sem chamar atenção excessiva a si mesma. Os enquadramentos em scope permitem retratar os espaços, os deslocamentos, imergindo Gauguin na grande floresta ou sublinhando a solidão da amada Tehura dentro de um casebre. Cottereau sabe explorar o Taiti para além do aspecto turístico, sugerindo uma estranheza, um distanciamento do olhar europeu.
“Sou uma criança. Sou um selvagem. Quem me critica não sabe o que há no espírito de um artista”. É interessante como o protagonista tenta se valer de sua posição de autor no momento em que a situação se torna desfavorável: a doença se acentua, a esposa parece apaixonada por um jovem rapaz da região (Pua-Tai Hikutini), outros artistas começam a vender mais esculturas do que ele. Gauguin se corrói de ciúmes, e inveja e de doença. Ele tenta evocar um status que não possui neste país distante, e nem mesmo possuiria em seu próprio país.
O roteiro caminha para um desenlace crepuscular, uma espécie de fracasso não exatamente do pintor, mas de sua persona dentro da sociedade, de sua figura como símbolo da cultura e das artes europeias. No Taiti, Gauguin não deixou marcas, não mudou a vida das pessoas. O filme desconstrói paulatinamente o olhar do civilizado ao selvagem. Ali, o colonizador é colonizado, fagocitado, até desaparecer. Triste e bela maneira de enxergar a vida do artista, cujo valor se estabelece apenas com o tempo, após a sua morte.