O desafio de viver
por Francisco RussoDaphne é uma jovem solteira, independente, que trabalha na cozinha de um restaurante londrino e leva a vida como bem entender. Aos 31 anos, ocupa o tempo devorando livros de seu ídolo, o filósofo Slavoj Zizek, enquanto se diverte tendo relações sexuais com diversos parceiros. Daphne, no entando, não acredita no amor: para ela nada mais é do que uma "ilusão necessária para a propagação da espécie". Sua descrença em relação ao mundo é flagrante, o que a torna arredia e, por vezes, agressiva em relação a quem está à sua volta.
Por mais que à primeira vista soe simples, há muito a destrinchar sobre a vida desta personagem-título. A começar pela influência escancarada de Zizek no roteiro escrito por Nico Mensinga, no sentido de trazer aos diálogos um tom ácido que varia entre o humor e o sarcasmo. O niilismo de Daphne acerca da vida como um todo, não só em relação aos relacionamentos mas também à sua própria existência, combina com este tom sempre crítico, o que automaticamente a torna uma personagem instigante pelo que diz e, ao mesmo tempo, difícil de lidar pelo tom seco constante. Neste cenário, a busca por novos parceiros sexuais não só serve como prazer fácil como, também, mera distração.
Entretanto, como ser humano que é, Daphne não é só razão. Por mais que o emocional esteja enclausurado a sete chaves e seu lado social seja quase inexistente, o estopim para (alguma) mudança interna vem com a ocorrência de um assalto, no qual vê um homem ser esfaqueado. Sem entender ainda o quê, um incômodo dentro de si faz com que vá a um psicólogo indicado pela polícia local. Entretanto, a aceitação de que há algo destoante não é tão simples assim, ainda mais para quem tem uma visão descrente sobre tudo, incluindo a si mesma.
A construção de tal labirinto interior em uma personagem tão fechada em si mesma é o grande desafio do roteiro, cujas nuances são apresentadas paulatinamente a partir das breves relações que Daphne possui e, especialmente, do modo como trata quem a cerca. Para tanto, conta com o belo auxílio de sua protagonista, Emily Beecham, que compõe uma personagem ao mesmo tempo difícil e fascinante, pela certeza absoluta nas opções de vida que assume. Com diálogos muito bem construídos, especialmente no jogo estabelecido com o candidato a pretendente David (Nathaniel Martello-White, de presença carismática), Daphne é um filme instigante que, com uma boa dose de cinismo e (às vezes) de humor negro, diverte ao mesmo tempo em que faz pensar acerca das necessidades do ser humano.
Vale também ficar de olho no que trará a carreira de Emily Beecham, atriz de enorme potencial e carisma que aqui demonstra ser capaz de segurar papéis cuja complexidade é desvendada a partir de sutilezas, de comportamento ou de olhar.
Filme visto na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2017.