Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Dona Flor e Seus Dois Maridos

Jorge amado

por Rodrigo Torres

Na nova adaptação de Dona Flor e seus Dois MaridosJuliana Paes vive a protagonista, Marcelo Faria interpreta Vadinho e Leandro Hassum é... Leandro Hassum.

E essa é a principal concessão do diretor e roteirista Pedro Vasconcelos ao espectro de popularidade de sua primeira versão cinematográfica, que ostentou o título de maior bilheteria brasileira de todos os tempos até o lançamento de Tropa de Elite 2, 34 anos depois. Uma concessão que se mostra ruim, transformando o sistemático Teodoro em um homem bobo. Se o humor é característica importante na obra original, a ambiguidade também o é, e se perde um tanto no que tange à dualidade entre os dois maridos de Flor.

Teodoro se apresenta cheio de virtudes: um homem correto, financeiramente estável, gentil, respeitoso — a dádiva de deus talhada em seu nome. Seu outro lado, porém, é motivo de piada nessa versão, e última impressão sobre ele. Um sedutor, Vadinho é posteriormente apresentado como um cafajeste em sua pior acepção, abusivo, ao extremo. Quando retorna, porém, lhe é conferida a redenção, admitindo o mal que fez à esposa e verbalizando o que o espectador já sabe (algo tão desnecessário quanto ilustrativo do favorecimento ao personagem): Flor precisa dos dois para ser completa, feliz. Frente à caricatura de que Teodoro é feito, a complexidade de Vadinho destoa, e até incomoda. A ótima interpretação de Marcelo Faria — produtor do longa-metragem e seu intérprete também na montagem teatral de 2008 — acentua essa discrepância.

De resto, Faria e Vasconcelos são reverentes à obra de Jorge Amado. Da melhor forma possível, realizando uma adaptação ao mesmo tempo fiel e serviente ao cinema. Bem identificáveis, os cinco capítulos do livro original fluem de forma orgânica, mesmo quando uma delas se baseia em flashbacks. A narração em off, comedida, é sempre complementar, nunca redundante. A transposição de diálogos íntegros comunicam sua fonte literária com destreza e beleza. O palavreado chulo e o sotaque baiano se enlaçam com o ritmo da prosa, em especial quando Flor e Vadinho estão em cena, compondo bela dramaturgia. E tudo isso remonta perfeitamente a um tempo e a um local passados de maneira deliciosa.

A direção de fotografia de Luciano Xavier é incisiva, quase se excede em sua ambição de fazer cinema para a telona. No todo, porém, demonstra profundo respeito a Jorge Amado — desde as primeiras cenas. Quando Vadinho morre, cai, a câmera o acompanha, vira, perde o eixo, e segue ecoando o desespero de Flor (em sua imaterialidade e grandeza) ao subir e enquadrar todo o cenário: uma ladeira com pavimento de pedra, a arquitetura, uma cruz estrategicamente no meio da multidão. É assim em todo momento, com cenas externas que buscam explorar a cidade de Salvador e fazer jus à sua descrição detalhada nas páginas de "Dona Flor e seus Dois Maridos". E assim o uso de travellings radicais e ângulos ousados se justifica para além do ego do fotógrafo, aliando arrojo e beleza a função.

Empregada sem economia, a contraluz ora ilustra a proposta tentadora de Vadinho a Flor, com a paisagem de uma igreja no topo do morro, ora o luto de sua esposa, tendo o mar da Bahia como pano de fundo. Em outro momento, o recurso adorna uma das lindas cenas de sexo do filme, ilustrando o prazer de Flor (estampado no olhar de Juliana Paes, em atuação resplandecente) bem melhor do que verbalmente. A direção de arte, riquíssima, e o figurino (que se preocupa não somente em evocar a época, como em usar o amarelo para exprimir a ingenuidade de Teodoro) completam a trinca responsável pelo ótimo trabalho visual — e narrativo — do longa-metragem.

O roteiro tem menor preocupação com essa contextualização histórica e retrata apenas suficientemente o cotidiano soteropolitano da década de 40 — o que rende os momentos de graça mais genuína e aproveita com timidez toda a provocação de Jorge Amado, ao retratar o povo, seus costumes, contradições morais, sem juízo de valor. A emancipação feminina, inerente à trama, e a importância do candomblé no sincretismo religioso brasileiro têm o devido lugar no subtexto, e bem-vindo haja vista sua atualidade. O enfoque seguro no triângulo amoroso derrapa na resistência de Flor ao fantasma de Vadinho, repetitiva e previsivelmente infrutífera. Mas nada que abale uma adaptação respeitosa à origem literária, eficiente como cinema e agradável como a arte de Dominguinhos e Maria Bethânia, ritmo e voz que agraciam a sessão.