Os espaços ocupados pelo homem
por Sarah LyraNão são raros os filmes que usam uma ambientação interplanetária para questionar ou dar sentido às ações humanas, impulsionar uma jornada existencial, ou sugerir que a imensidão do espaço sideral é um lugar para introspecção, onde o homem pode se encontrar consigo de forma mais íntima. Em O Primeiro Homem, Damien Chazelle usa a trajetória de Neil Armstrong até a lua como pano de fundo para falar de luto; Interestelar tem na relação entre um pai e sua filha o exemplo do amor como um sentimento capaz de transcender dimensões do tempo e espaço; Gravidade aborda, entre outras questões, o instinto humano de sobrevivência e autopreservação, além de falar sobre solidão e perdas; e, agora, Ad Astra - Rumo às Estrelas mostra como os impactos do abandono de uma figura paterna podem permear toda a vida de uma homem, representado aqui pelo protagonista Roy McBride (Brad Pitt).
Investigar as complexidades humanas em uma obra cinematográfica não apenas exige um comprometimento, como um certo nível de familiaridade com as dores que se pretende transmitir pelo comportamento dos personagens. No filme de James Gray, essa relação mais próxima com o recorte temático nem sempre é evidente. De maneira geral, Ad Astra é um filme frio e marcado por um distanciamento entre protagonista e público, o que, dependendo da leitura do espectador, pode ser um mérito de Gray por retratar de forma mais crua o processo de McBride, sem grande espetacularização de seu sofrimento. Para ilustrar a ausência de Eve (Liv Tyler) na vida de Roy, por exemplo, a montagem opta por um fade suave que sutilmente a apaga do segundo plano da imagem, sugerindo que a personagem estivera ali anteriormente, mas sem necessariamente tornar isso o foco da cena. É como se McBride estivesse divagando sobre sua própria solidão, e o recurso fosse empregado de maneira a inserir ou retirar objetos e pessoas do quadro na mesma velocidade com que surgem e desaparecem de nossas mentes.
Habituado a uma fala protocolar que impressiona seus superiores pela calma ao lidar com situações de estresse, McBride é igualmente mecânico para expressar seus sentimentos. Ao ser perguntado sobre como lidou com a ausência do pai em sua vida, nada mais sintomático do que responder “certamente foi muito difícil para minha mãe”, demonstrando uma inabilidade de acessar suas frustrações e ao mesmo tempo projetando suas dores em uma figura externa. Seu grau de autopercepção é tão alto, que mesmo usando de subterfúgios para responder a uma simples pergunta, ele se apressa em demonstrar consciência de suas ações e lançar um diagnóstico para a contradição detectada. “Fui treinado para compartimentalizar”, justifica ele, momentos depois.
Talvez por conta dessa característica quase robótica do personagem, é difícil, enquanto espectador, se relacionar com sua busca. A narração em off, embora tenha a função clara de apresentar um contraponto à frieza de seu comportamento e trazer nuances à sua personalidade, se torna excessiva e deixa pouca margem para interpretação. Prova disso é a cena em que McBride faz um enorme esforço físico para invadir uma nave que está prestes a partir ao encontro de seu pai. À medida que ele puxa uma corda e dialoga internamente com o ente querido, a narração torna a motivação ainda mais óbvia. “Estou sendo puxado até você”, diz Roy, com a aparente intenção de traçar um paralelo entre o puxar da corda e sua atração inconsequente pelo destino do pai. O que acontece em seguida, aliás, é muito mais potente em termos de narrativa, porque permite que avaliemos, com base em percepções próprias, a conduta de Roy em relação à tripulação da nave invadida. Com a deixa do astronauta ao dizer que “a História irá decidir”, sua abordagem é colocada sob deliberação, mas, mais do que isso, é importante para notar como o filho, cuja excelência profissional é inspirada nas conquistas do pai, tende a repetir o mesmo erro que ele. O espelhamento é revelado como uma ferramenta determinante na construção do caráter de Roy.
Também problemática é a explicação, em certo momento, acerca do que deu errado entre Roy e Eve. Já estava perfeitamente claro que algo desandou na relação e que o motivo era a incapacidade de Roy de se conectar ou se mostrar vulnerável diante da amada. Por isso, a inserção de um vídeo em que a antiga companheira revela com todas as letras sua frustração por não conseguir acessá-lo emocionalmente não só se torna redundante, como tira a força das pequenas sutilezas do desgaste construídas até então. Com isso, Gray desperdiça a chance de instigar o espectador a uma interpretação mais individualizada e de preencher as lacunas com referências de nossa própria vivência. Em Ad Astra, quase tudo é dado, como um roteiro de como devemos pensar ou reagir diante dos acontecimentos. Note como, no momento mais ambíguo do filme, quando Roy parece estar desorientado por conta dos meses de isolamento, o roteiro insere uma fala que, mais do que uma caracterização do estado de espírito do protagonista, explica a cena para o espectador.
Como costuma ser o caso em filmes no espaço, o diferencial no longa de Gray é o exuberante design de produção, especialmente a fotografia. Não porque exibe imagens realistas de satélites e planetas que compõem o nosso sistema, mas porque busca uma identidade própria a cada plano, principalmente quando trabalha a variação cromática entre vermelho, laranja e amarelo, ou em cenas como a de perseguição na lua, onde somos conduzidos em grande parte pelo contraste entre o prata da superfície lunar e os detalhes em cobre e dourado nas roupas e veículos espaciais. É válido ressaltar também como o chamado “comfort room”, lugar na base subterrânea de Marte onde os astronautas são levados para desacelerar os batimentos cardíacos, é revestido de paisagens paradisíacas da Terra, com seus rios e mares, rica vegetação, cadeias de montanhas etc. Em outras palavras, tudo aquilo que estamos dispostos a destruir para expandir capitais econômicos.
Mesmo deixando a desejar em seu aspecto existencialista, Ad Astra equilibra suas forças e consegue se destacar principalmente por sua leitura do irrefreável poder de colonização do ser humano. A presença de unidades da Subway e do Applebee’s na base lunar, toda a logística comercial envolvida nas viagens saindo da Terra e as frustrações geradas pela burocracia espacial (é difícil não se identificar, mesmo que em um nível mais primitivo, com a cena em que Roy tenta um acesso e é impedido por uma máquina, que o instrui a contatar um representante) são importantes acenos para deixar evidente sua mensagem.