Críticas AdoroCinema
2,5
Regular
Vingança a Sangue Frio

Uma comédia com erros

por Renato Furtado

Arrastar um cadáver até o porta-malas de seu carro certamente não estava na lista de tarefas de Nels Coxman (Liam Neeson), recentemente eleito Cidadão do Ano da pequena cidade de Kehoe, no Colorado, por causa de seu ingrato e solitário, porém essencial, trabalho: limpar as rodovias que conectam o vilarejo ao restante do estado, constantemente bloqueadas pela neve que parece cair eternamente sobre esse canto dos Estados Unidos. Mas é evidente que as coisas mudariam na vida de Nels após o brutal assassinato de seu filho, Kyle (Micheál Richardson) e a partida de sua esposa, Grace (Laura Dern).

Homem comum decide vingar-se de criminosos após uma tragédia pessoal destruir sua felicidade e lhe roubar entes queridos: a premissa, desde o sucesso do Busca Implacável original, nos idos de 2008, praticamente pede pela escalação de Neeson, astro do cinema de ação cujo nome tornou-se sinônimo de narrativas de justiceiros à procura de sangrenta retribuição. Portanto, ele é a escalação ideal para um longa como Vingança a Sangue Frio, correto? Não, e o próprio ator é o sintoma do defeito crítico desta obra: a indecisão entre seguir a cartilha das comédias de ação de humor negro ou acomodar Neeson na trama.

Apesar de já ter feito diversos papéis cômicos durante sua carreira, e de ter trabalhado com cineastas como os irmãos JoelEthan Coen (The Ballad of Buster Scruggs), conhecidos por seu senso de humor cáustico, o ator norte-irlandês, quando no modo "busca implacável", é incompatível com a verve mordaz que o diretor norueguês Hans Petter Moland infunde neste Vingança a Sangue Frio, uma adaptação hollywoodiana do seu próprio O Cidadão do Ano. E, assim, na tentativa de inserir Neeson no contexto da história e manter a estrutura do original, esta empreitada Frio resulta irregular, e mais eficiente quando prescinde de Neeson.

Considerando que o astro interpreta virtualmente o mesmo papel ao qual vem dando vida na última década, a ideia de imaginar o ultraviolento e macho Neeson dizer que aprendeu técnicas para matar lendo um romance policial não soa como um absurdo cômico, mas sim como um despautério melodramático e canastrônico. O problema não é a qualidade da performance: é o fato de que ela não se encaixa em uma trama que agrupa uma tribo de índios traficantes de cocaína, bandidos burros com apelidos rísiveis e um criminoso de alto nível obcecado com a saúde, cortando açúcares e gorduras das refeições do filho.

Assim, as sutilezas da comicidade disparatada de Moland perdem-se por completo em uma sequência de gags diluídas para as sensibilidades do espectador médio estadunidense — ou seja, aquele que é fã incondicional do trabalho de Neeson —, nada afinadas ou sintonizadas com o humor sombrio e contundente característico dos nórdicos. São os aspectos externos, portanto, que complicam o rendimento de Vingança a Sangue Frio, sendo a fadiga causada pela constância da persona matadora de Neeson nas telonas o mais nocivo: o ator é, ao mesmo tempo, a melhor e a pior escolha para viver o papel de Coxman.

A incoerência estabelecida entre figura e fundo fica evidente, em particular, na sequência da loja de vestidos de noiva, que é comandada por Speedo (Michael Eklund), um traficante de quinta categoria ligado ao assassinato de Kyle. Quando chega ao estabelecimento, pronto para se vingar, conferindo mais peso do que pede o papel, originalmente vivido por Stellan Skarsgard, Neeson traz, sem nem precisar se esforçar, um senso de suspense e ameaça à situação, independentemente do grotesco e hilário embate que não é traduzido das páginas do roteiro para as telas: a originalidade se esvai e dá lugar ao esquematismo.

A americanização da obra, que suga quase toda a sagacidade do roteiro original de Kim Fupz Aakeson, adaptado pelo novato Frank Baldwin, não prejudica, entretanto, o todo, que é salvo pelas longas sequências nas quais Neeson está ausente. A disputa por território entre os brancos e os índios do Colorado une-se à hostilidade alva das paisagens, sempre salpicada pela cor rubra do sangue que jorra dos inúmeros mortos deste filme, conjurando uma jocosidade niilista e improvável, da qual destaca-se a piada dos obituários, impressos na tela conforme a contagem de execuções aumenta aos poucos.

O conflito narcotraficante entre o Búfalo Branco (Tom Jackson) e o Viking (Tom Bateman) ainda ganha mais uma camada de relevância com a inclusão de uma subtrama policial, liderada por Kim Dash (Emmy Rossum), que incrementa a sensação de que estamos vendo uma espécie de versão divertida, ainda que mais fraca e injustificada do clássico Fargo. Expandido-se para inúmeras direções, sem necessariamente sossegar em nenhuma delas, Vingança a Sangue Frio é um longa violento, inteligentemente ridículo e ocasionalmente hilário, que tem em Neeson sua principal maldição. Paradoxos das fórmulas de Hollywood.