Natal em família
por Rodrigo TorresHá uma certa crença de que crítico de cinema só aprecia obra-prima. Filmes complexos, de profundidade temática, ambição estética, atuações viscerais, tudo junto, que são uma raridade. Como todo ser humano, quem analisa a sétima arte pode se divertir, por exemplo, com comédias despretensiosas em todos esses aspectos, porém muito eficientes em sua proposta. Pai em Dose Dupla 2 é assim, com a distinção de tanto saber explorar autorreferências, como de resvalar em temas espinhosos com graça, sutileza e timing narrativo.
Em seu melhor trabalho no cinema após Este é o Meu Garoto, Quero Matar Meu Chefe 2 e o próprio Pai em Dose Dupla, Sean Anders traça rimas visuais e temáticas entre o longa anterior e esta continuação desde as cenas iniciais. Com dinamismo e inteligência, o diretor e roteirista evoca no espectador a lembrança do primeiro filme ao mesmo tempo em que constrói gags em si mesmas — como a chegada dos pais de Brad (Will Ferrell) e Dusty (Mark Wahlberg) no aeroporto, que despertam as mesmas emoções dos protagonistas no longa original, e ainda rendem momentos engraçados.
Essa introdução também é ágil em mostrar que Brad e Dusty estão em uma situação completamente diferente. Conciliados entre si e aceitos por Megan (Scarlett Estevez) e Dylan (Owen Vaccaro), agora eles dividem as atividades com as crianças; encenadas de modo a acentuar que elas estão felizes, mas sentem falta de aspectos específicos em cada um dos pais. Isto gera um ciúme, que evolui para uma guerra velada, e enfim se concretiza com o mesmo efeito cômico grotesco de Pai em Dose Dupla, marcado por efeitos especiais toscos (que funcionam nesse contexto) e acidentes vitimando o atrapalhado Brad.
Dado o desejo mútuo de terem um bom convívio, a grande dualidade pela aceitação de Megan e Dylan em Pai em Dose Dupla 2 é concentrada em Kurt (Mel Gibson) e Don (John Lithgow) — e subvertida, com o vovô bonachão sendo amado de imediato e o desbocado e mulherengo Kurt tendo que se esforçar para conquistar os netos. Interpretando versões radicalizadas dos filhos Dusty e Brad, Gibson veste a caricatura com precisão, enquanto Lithgow brilha não somente em sua caracterização de um idoso infantilizado, como quando o roteiro exige discrição e emotividade do personagem.
No entanto, a sagacidade do texto e da direção reside em sua capacidade de extrair comédia de todos os tipos e situações que constrói, por mais simples que sejam. É possível antecipar o que acontecerá em muitas cenas, inclusive no clímax do filme, mas o timing e as atuações são tão eficientes que até mesmo a expectativa pela gag se torna envolvente. Muito por conta da atuação de Will Ferrell, que — além de um completo idiota, e isso é um elogio — esbanja um carisma que tanto falta a Wahlberg. O ator se abraça de tal modo ao tipo durão (condizente com sua real personalidade) que peca por antipatia em cenas que exigem um pouco de ternura em Dusty. Ao lado da modelo brasileira Alessandra Ambrósio e do lutador John Cena, ele destoa do resto do elenco; incluindo o núcleo mirim, ainda mais adorável na sequência.
Por bem, as pequenas falhas de Pai em Dose Dupla 2 são assimiladas pela construção de seu roteiro, montado como uma escalada de piadas do início ao fim. Cada situação cômica é pensada de modo a suceder outra e assim compor todo o longa-metragem, de maneira orgânica, em set pieces surpreendentemente bem articuladas.
Outra grata surpresa é a provocação diluída em um filme tão bobo. Sara (Linda Cardellini) permite que a filha pratique caça esportiva somente para confrontar o machismo do avô Kurt, há uma insinuação de homoafetividade ousada já no fim e são inúmeras as cenas de dois homens se beijando. A abordagem é tão amena que esse aspecto não soa como ataque à famigerada família tradicional. Simultaneamente, a comédia trata questões importantes com a naturalidade e a empatia com que devem ser encaradas na sociedade, o que é muito bacana.
Pai em Dose Dupla 2 constitui, assim, uma diversão para toda a família mesmo. Todas elas. Transmitindo toda a afetuosidade do Natal sem hipocrisia, com aceitação, e até mesmo um bocado de pieguice em seu terceiro ato — o que, em seu exagero, é até bem condizente com o humor de Will Ferrell, seu bromance com Mark Wahlberg, o figurino de John Lithgow... Enfim, tudo no filme.