Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Caçando Fantasmas

O limite do cinema como terapia

por Bruno Carmelo

A reconstituição de fatos reais aparenta ser um instrumento pouco propício ao documentário, por assumir de modo direto seu caráter fictício. Mesmo assim, alguns diretores têm utilizado o procedimento para efetuar um documento sobre a ficção, ou seja, sobre o processo de encenação como finalidade em si, desprendida da qualidade do resultado fictício. O diretor Joshua Oppenheimer foi particularmente bem-sucedido em O Ato de Matar, filme no qual carrascos indonésios reproduziam, sem remorso, seus principais assassinatos. Raed Andoni parte de um acerto de contas histórico semelhante, dando a voz às vítimas.

O cineasta coloca-se em cena ao lado de uma dezena de palestinos presos num centro de detenção israelense conhecido pelas práticas de tortura. Após convidar os detentos a reencenarem seus dias de aprisionamento, pede que construam com as próprias mãos uma versão cenográfica do local, com medidas exatas dos cômodos, mesma cor das paredes, móveis semelhantes, diálogos retomados de suas lembranças. Os detentos podem escolher seus papéis neste teatro catártico, tendo o direito de assumir a posição dos israelenses, se preferirem. A intenção é promover a cura pela representação segura do trauma, além de refletir sobre a violência sem precisar ilustrá-la com materiais de arquivo.

Por um lado, a empreitada funciona em sua vertente humanista. Andoni jamais evoca os motivos da prisão de cada um, filmando-os com evidente pudor. Os entrevistados não dizem mais do que o desejado, e quando atravessam alguma catarse, nas raras cenas de choro, o diretor gira a câmera até retirar a pessoa do enquadramento. Existe a intenção empática de preservar estas pessoas, algo fundamentalmente contraditório com o mecanismo do filme, que consiste em vivenciar o trauma. Afinal, Caçando Fantasmas deseja reproduzir a dor ou proteger-se da mesma?

É nesta indefinição que o documentário encontra seus maiores problemas. O Ato de Matar estava imune a estes questionamentos pela visão farsesca e tragicômica da encenação – o sangue era completamente falso, o caráter trash conferia uma distância óbvia da realidade. Já Andoni recria cenas de humilhação com riqueza de detalhes, como se buscasse chegar o mais perto da dor real, mas quando conquista tal efeito, amedronta-se e recua. O filme nem vai a fundo em sua experiência, o que poderia ser defensável caso assumisse o caráter perverso da encenação, nem adota um olhar totalmente piedoso. Ele parte de uma boa ideia, mune-se das melhores intenções, mas não demonstra respaldo psicológico ou cinematográfico para lidar com as consequências do vespeiro em que se mete.

O incômodo comprova a dificuldade de assumir o cinema como forma de terapia quando a representação não reflete sobre a sua distância em relação ao referente. Não se provoca pessoas traumatizadas sem assumir a responsabilidade pelas consequências deste exercício. Pelo menos, Caçando Fantasmas serve como estudo de causa sobre a ética no cinema e a moral do dispositivo cênico.

Filme visto no 67º Festival de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2017.