Críticas AdoroCinema
1,5
Ruim
Uma Noite Não É Nada

Presença de Márcia

por João Vítor Figueira

Em seu primeiro filme desde a comédia Família Vende Tudo (2011), o diretor Alain Fresnot em tese se propõe a visitar o terreno do romance em Uma Noite Não É Nada. Em tese porque a situação que o longa-metragem apresenta não deveria se enquadrar como uma relação romântica, mas sim como um abuso que a dramaturgia proposta aqui jamais reconhece como tal.

Paulo Betti, que repete a parceria com o cineasta francês radicado no Brasil com quem trabalhou em Ed Mort (1997), interpreta o entediado Agostinho em uma tristonha cidade de São Paulo em 1984. Professor de física em um supletivo noturno, o protagonista tem um casamento frio com a dedicada Januária (Claudia Mello) e parece apático ao mundo que o rodeia. Entretanto, o professor passa a se sentir instigado pela presença de uma aluna sexy e desinibida que frequenta suas aulas, algo que sela seu destino. Márcia (Luiza Braga) é uma típica mistura de Lolita com femme fatale com todos os clichês que o olhar masculino gosta de imprimir a esse tipo de figura. Ela é misteriosa, aberta ao sexo ao ponto de se masturbar na sala de aula só para chamar a atenção do professor e desde o início da narrativa está atraída pelo docente sem que o filme gaste um segundo sequer para explicar essa atração.

Não é papel da arte ser moralista, especialmente em tempos tão conservadores que urgem por obras corajosas e sem medo de tocar em tabus. Entretanto, existe uma diferença entre provocar o status quo e reforçar ideias das mais arcaicas, como a dominação da mulher pelo homem. Na medida em que a obsessão de Agostinho por Márcia aumenta, o personagem de Betti parece perder cada vez mais os limites para consumar seu desejo carnal por Márcia. O roteiro não se priva de tratar como "românticas" ou "poéticas" (como indica a transição momentânea da fotografia para o preto e branco) situações das escabrosas, como os reincidentes atos de abuso sexual cometidos por um homem que não aceita ter seu desejo negado. O filme chega ao cúmulo de romantizar uma cena de estupro, relativizando agressões físicas e consentimento.

Aos poucos Agostinho descobre que Márcia é uma junkie (que ele não sabe se quer mais "salvar" ou "comer") e o roteiro de apresenta o primeiro e único conflito realmente intrigante da trama quando ela revela ser portadora do vírus HIV. Imerso em uma ânsia para sentir alguma coisa, qualquer coisa, em determinada noite Agostinho encontra Márcia dormindo com uma seringa presa ao braço e usa a mesma agulha para se injetar, mesmo sabendo que isso significa se expor ao vírus da AIDS. A apatia, a miséria interna e os anseios de Agostinho são defendidos com uma boa interpretação de Betti, uma atuação capaz de ao menos fazer jus às ansiedades do único personagem minimamente desenvolvido no longa-metragem. Márcia, além de tudo, é uma personagem rasa que parece ser desdenhada pelo roteiro. A atuação de Braga, que oscila de maneira pouco natural entre os picos da personagem, não colabora para a profundidade desse papel. Na pele da misericordiosa Januária, a esposa que cuida do marido mesmo sabendo que foi a infidelidade dele que o deixou doente, Mello ao menos consegue apresentar um comentário um pouco mais complexo sobre piedade.

O recorte temporal que o filme escolhe, ao situar a trama na década de 1980, ao menos é eficiente ao retratar os estigmas ligados à AIDS naquela época em que a doença significava uma sentença de morte, o que se reflete nas atitudes autodestrutivas dos protagonistas. Contudo, Uma Noite Não É Nada continua como um filme que tenta ser anti-moralista e acaba desfilando clichês e reforçando estereótipos.

Filme visto no 20º Festival do Rio, em novembro de 2018.