A Arte como ciência política
por Renato FurtadoEm que momento esquecemos de nossas raízes a tal ponto que, hoje, as queimamos, dilaceramos, cortamos, eliminamos e serramos? Em que momento de nossa história nos esquecemos de nossas ancestralidades a tal ponto que, hoje, praticamente negamos e/ou ignoramos certa parte de onde viemos, certa parcela de quem um dia fomos? Em que momento esquecemos que o nome da nação é derivado diretamente de uma árvore e que em nossos corpos “não corre sangue, mas seiva?” E existem respostas para estes questionamentos? Soluções para a catástrofe iminente?
Ainda que dramáticas, beirando por vezes o romantismo desesperado, as perguntas levantadas pelo documentário Amazônia, o Despertar da Florestania são tratadas não só com a urgência necessária, mas também com uma muito bem-vinda sobriedade pela atriz, ativista ambiental e agora também cineasta Christiane Torloni. Em sua estreia na direção, a renomada intérprete das telenovelas globais despe-se de toda e qualquer dramaturgia para acessar algo mais profundo, de ordem mística e sagrada, mas nem por isso menos concreta ou vivaz: o poder surreal da floresta amazônica — e o risco de seu desaparecimento.
Evitando o didatismo e mergulhando com firmeza em um tom de “chamado às armas”, Torloni e seu codiretor, Miguel Przewodowski, estruturam um tratado político que não pretende deixar dúvidas: a cisão hoje experimentada pela nação brasileira, dividida e agredida pela corrupção sistêmica que assola o cenário institucional, é um sintoma de um projeto falho de país, fracassado muito por causa da ganância capitalista direcionada à hiperexploração dos recursos naturais, em especial aqueles que compõem o ecossistema amazônico. E para tecer esta trama, os documentaristas reúnem os depoentes perfeitos.
Uma não-ficção de formato convencional como este Amazônia, desprovida de inovações estilísticas ou de experimentações temáticas por natureza anti-artificial, só funciona mediante a qualidade da constituição do elenco de seus talking heads — em outras palavras, um filme como este só é tão bom quanto o nível dos testemunhos que colhe e dispõe frente ao espectador. E aqui, felizmente, não faltam personalidades midiáticas de peso, prestígio e inteligência, desde o campo das artes ao âmbito das ciências, para traçar e destrinchar o devastador panorama no qual nos encontramos como sociedade.
Do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso à Marina Silva, passando pela atriz Lucélia Santos, a jornalista Miriam Leitão e a própria Torloni, e enfim ao resgate de entrevistas concedidas pelos já falecidos Darcy Ribeiro e Orlando Villas-Boas, O Despertar da Florestania é um primor em termos de riquezas de testemunhos. Mas, mesmo assim, e liderado pela figura da atriz e cineasta — que habilmente insere-se na narrativa como fio condutor do público, tanto como rosto conhecido para os espectadores quanto como a ativista de longa data que é —, o documentário não limita-se às figuras facilmente reconhecíveis.
Enquanto é evidente que os discursos, por exemplo, do jornalista André Trigueiro, do fotógrafo Araquém Alcântara e do músico Milton Nascimento, três personalidades profundamente ligadas ao meio-ambiente, sejam fundamentais, é o olhar lançado por Torloni e Przewodowski àqueles que sofrem diretamente na pele o desastre ambiental perpétuo no qual o Brasil foi e vem sendo colocado há décadas que faz com que Amazônia, o Despertar da Florestania erga-se sobre seus pares, destacando-se não só por um ângulo acadêmico e científico, mas também por gravitar na dimensão prática da realidade.
Aprofundamo-nos, assim, na perspectiva teórica, nas previsões de analistas e no exame cirúrgico de algumas das mentes mais avançadas de nossa cultura e também ouvimos o “grito” que todas as árvores fazem ecoar quando são derrubadas. Filme de ideias e opiniões — de uma posição Política inequívoca que supera a esfera política feita prisioneira de escândalos pueris e de canetadas letais sobre os direitos civis —, Amazônia consegue ser, ao mesmo tempo, uma carta de amor e um apelo de puro terror, ainda que muito centrado e focado na gravidade de sua missão. Há, aqui, muito afeto e muito desejo de resistência.
Político com “p” maiúsculo, a propósito, porque O Despertar da Florestania, nos moldes da teoria de Darcy Ribeiro no fundamental “O Povo Brasileiro” (ed. Global), argumenta que o Brasil padece porque segue perseguido pelos fantasmas mais nefastos de seu passado, seja o regime escravocrata do Império, seja o caráter autoritário e brutal da ditadura militar instaurada em 1964. Para os cineastas, de fato, apoiados pelas palavras do sociólogo Sérgio Abranches, a equação é simples: o tipo de indivíduo que matou, torturou e escravizou no passado é o mesmo tipo de indivíduo que, atualmente, desmata.
Retomando imagens de arquivo do movimento de abertura política das Diretas Já, do qual Torloni e Santos participaram ativamente, ao lado de inúmeros outros artistas, o documentário propõe um elo indissociável entre a crise democrática e a ecológica. Lembrar para que não se repitam os erros do passado e não desviar o olhar para não negar a realidade são, enfim, os dois princípios balizadores de O Despertar da Florestania, documentário este que, a despeito de determinadas passagens desnecessariamente alongadas, tangenciais à potência da dissertação central, concretiza o preâmbulo da cineasta.
Logo no início da projeção — após o poema lido por Antonio Abujamra e o mergulho vindo do espaço sideral em direção ao nosso planeta, como se a câmera fosse um alienígena disposto a tentar entender a lógica de nosso mundo por dentro —, Torloni promove um conceito interessante: a Arte é uma ciência política. A missão maior deste documentário, assim, torna-se imediatamente o de fazer da Arte, de fato, uma ciência política. E nos tempos em que vivemos, fazer ciência política é buscar o consenso, por mais que este objetivo pareça impossível ou inatingível neste instante de dissolução de certezas e identidades.
Identidade, aliás, é um tema crucial para compreender esta empreitada documental: frente a um projeto de país esgotado, que solapou a diversidade e a pluralidade de um povo que parecia ser capaz de tudo, e que teoricamente poderia ser capaz de tudo, O Despertar da Florestania defende apaixonadamente que o único caminho para forjar uma nova identidade é regressar às nossas raízes, simbólica, geográfica e fisicamente localizadas na Amazônia. Em tempos regidos pela sensação do fictício e do "lunatismo" das teorias de conspiração, O Despertar da Florestania é essencial por não diluir os fatos.
Na era da aparente vitória do negacionismo e das fake news, Torloni tem êxito, de fato, por não dourar a pílula e por não desviar da verdade, esse conceito tão fugidio e tão necessário, principalmente quando o assunto é uma não-ficção no cinema: a ditadura foi brutal e existiu; o aquecimento global não é uma jogada de marketing; "vender o futuro para comprar o presente" é o ideal capitalista; "crescer por crescer" é próprio das células cancerígenas; e é preciso tentar reverter os danos que já causamos ao planeta, antes que seja tarde demais.