Críticas AdoroCinema
2,5
Regular
Lola Pater

O corpo da mulher trans

por Bruno Carmelo

Aos 68 anos de idade, depois de viver uma série de personagens fatais e sedutoras, chega o momento em que a diva do cinema francês Fanny Ardant interpreta uma mulher transexual e árabe. A premissa constitui seu perigo e seu interesse. Lola Pater intriga e desperta incômodo pelo desafio de moldar um corpo e uma figura extremamente conhecidos, representante de uma classe rica e privilegiada, na personagem minoritária e excluída por excelência.

O diretor Nadir Moknèche, acostumado aos retratos de mulheres árabes, constrói sua história em doses equivalentes de doçura e previsibilidade. Lola (Fanny Ardant) vive há décadas separada da família, até receber a notícia de que sua esposa, de quem nunca se separou, acaba de falecer. O filho Zino (Tewfik Jallab), com quem Lola teve pouco contato, é confrontado pela primeira vez à figura do pai, hoje uma mulher transexual bem resolvida, independente, e professora de dança do ventre. As etapas seguintes são esperadas: a surpresa, a negação, a rejeição, o afeto inerente aos laços de sangue - o cineasta acredita que toda família, eventualmente, acaba se unindo - e a reconciliação anunciada no trailer e nos materiais promocionais.

O roteiro segue um caminho bem intencionado na construção de personagens. Lola é uma espécie de mulher bruta e egocêntrica, porém dotada de um humanismo que surge nas horas necessárias ao melodrama. Zino é um homem heterossexual e conservador, mas suficiente aberto para permitir uma aproximação e compreensão da identidade de gênero alheia. A narrativa está repleta de símbolos clássicos do drama, como cartas de despedida lidas em voz alta, retratos familiares e fitas de vídeo antigas. Apesar da subversão do tema, o projeto adota uma estrutura linear, convencional e pouco criativa. A experiente Ardant faz o possível para não transformar a personagem numa caricatura masculinizada, no entanto a pobreza dos planos e contraplanos impedem que qualquer atuação salte aos olhos. A importante cena do anúncio da paternidade revela uma fragilidade de mise en scène lamentável.

De fato, é possível que Lola Pater seja um filme “delicado” e “leve” no sentido depreciativo dos termos: ele aborda questões complexas sem se aprofundar, sem tocar nas feridas. É curioso como um elemento social tão marcante quanto a transexualidade nas sociedades árabes é abordada sem relação com a sociedade, a religião, a masculinidade padrão. Lola vive numa bolha em que tudo deu certo. O roteiro compara o tempo inteiro a imagem da mulher feminina e sensual ao seu passado, como homem supostamente heterossexual, com diversos flashbacks em vídeo lembrando que aquele corpo é outro. O filme está menos interessado na história de uma mulher do que no contraste mulher-homem, concentrando-se na biologia ao invés da psicologia.

Este talvez seja o ponto mais delicado do drama, ainda mais controverso do que a escalação de uma mulher cisgênero para o papel de uma mulher trans: a representação da transexualidade como fantasia. Lola Pater demonstra uma obsessão com a genitalidade de Lola, com direito a planos de detalhe na virilha da personagem para o espectador poder inspecionar o que se esconde sob as calças. Além disso, multiplica cenas de maquiagens, roupas, casacos, peles. Isso funciona como se, por trás dos acessórios, pudéssemos encontrar o Farid de antigamente, como se Lola fosse na verdade uma brincadeira, uma criação lúdica e fictícia. O filme não consegue compreender sua protagonista como mulher inteira, íntegra; ele a vê como uma sucessão de fragmentos e filtros. Mas Farid não existe mais. No fundo, era ele a fantasia. Na vida desta mulher transexual, existe apenas Lola.