Críticas AdoroCinema
1,0
Muito ruim
Corpo Estrangeiro

A viúva providencial

por Bruno Carmelo

Depois de uma longa jornada, a imigrante tunisiana Samia (Sara Hanachi) chega ilegalmente na França. Ela não tem dinheiro, não conta com a ajuda da família e teme ser descoberta pela polícia. Imed (Salim Kechiouche), um amigo de seu irmão, providencia um lar temporário, mas pressentindo a ameaça de estupro pelos colegas de quarto dele, Samia foge. A vida pode parecer difícil, mas logo na esquina – literalmente – mora uma pessoa disposta a ajudá-la: Madame Bertaud (Hiam Abbass), mulher de origem árabe, cidadã legalizada após o casamento com um francês.

A vida com Bertaud revela-se um paraíso de conforto e consumismo: a viúva lhe dá roupas, dinheiro, dicas de como sobreviver na cidade. Samia dorme na cama da patroa, trabalha muito pouco e ainda ganha alguns dias de folga. Quando Imed a persegue, Bertaud vem ao socorro novamente: ela se dispõe a conversar com o intruso e fazer sexo com ele para conseguir mais informações. Depois a imigrante revela estar cansada desta vida dura, de modo que a patroa novamente lhe consegue outro bom emprego, a permissão de estadia na França e mais dinheiro.

Corpo Estrangeiro é um filme, por assim dizer, inacreditável. O trio de personagens age de maneira abrupta e incompreensível: pode-se acreditar na compaixão da viúva por Samia, em função de sua própria origem magrebina, mas quem dormiria com um potencial agressor para ajudar a amiga? Se o homem continua importunando ambas, por que não tiram a chave da casa, que lhe deram de presente? Por que raios Samia andaria no meio da rua, em frente de um carro de polícia? As ações tornam-se artificiais porque a diretora Raja Amari faz questão de atribuir um peso muito grande a cada cena, sem desenvolvimento nem respiro. Toda imagem visa trazer uma grande transformação na jornada de Samia, mas nenhum roteiro sustenta tamanha obrigação de produtividade.

O acúmulo torna-se ainda mais risível quando o roteiro envereda pelos caminhos do thriller erótico B. A relação de amor e ódio dos dois jovens tunisianos, à mercê dos caprichos da mulher burguesa, ganha uma reviravolta a cada cinco minutos, de modo a aproximar inevitavelmente aquelas pessoas que, até dois minutos atrás, sequer se conheciam. Temos o sexo sem a sedução, as crises passionais sem o nascimento do amor, os surtos de ciúme sem o afeto. Bertaud, Samia e Imed vivem no extremo, em estado permanente de raiva, amor ou tesão.

O resultado é um projeto fetichista e involuntariamente cômico, que ainda acomoda muito mal o debate sobre o conservadorismo religioso, a imigração na Europa e o jihadismo. Em tese, poderia ter sido interessante desenvolver sem julgamentos morais a sexualidade de duas mulheres árabes. Mas seria preciso, antes, que elas fossem minimamente verossímeis, e que suas características étnicas e de gênero funcionassem como algo mais do que o tempero exótico para uma jornada sensual de autodescoberta.

Filme visto no 6º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2017.