Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Uma Mulher Fantástica

Uma história de resistência

por Bruno Carmelo

Em Gloria (2013), o chileno Sebastián Lelio efetuava um retrato íntimo e terno de uma mulher de meia-idade, solitária e confrontada a questões de sexualidade. Agora, em A Mulher Fantástica, o diretor permanece no intimismo e na feminilidade ao retratar o dilema de Marina (Daniela Vega), uma mulher transexual cujo namorado sofre um mal-estar súbito e morre. Além de lidar com o luto, precisa enfrentar a violência da família do falecido, que não a reconhece como namorada legítima. Sucedem-se cenas de humilhação a Marina em sua posição de transexual, de amante (o namorado era casado quando a encontrou) e de mulher mais jovem com recursos financeiros limitados.

No quesito político, o projeto efetua um painel vasto e afetuoso sobre a transexualidade, descrevendo uma série de agressões físicas e psicológicas diárias, que vão desde a ignorância alheia (um médico não sabe se a chama pelo nome social ou de batismo) até ataques motivados pelo ódio. Estas cenas combinam observação e denúncia, ou seja, vão da apreensão da realidade à interpretação da mesma, algo louvável para um tema pouco representado no cinema. Pela excepcionalidade e pela hostilidade recorrente, Marina corre o risco de ser transformada em mártir, um exemplo social das dificuldades encontradas em função de sua identidade de gênero.

Felizmente, Lelio consegue contornar o problema, primeiro ao impedir que sua vida seja um calvário: ela possui amigos, um emprego fixo de garçonete, e demonstra prazer em outras atividades como o canto. Segundo, a personagem é interpretada com frieza implacável por Vega, atriz ainda em fase de formação, com parte técnica deficiente, porém em evolução desde A Visita (2014). Embora não esteja à altura das cenas de maior complexidade emocional, ela se sai bem diante da imensa responsabilidade de ter a câmera colada ao seu rosto durante 120 minutos. Marina se mostra íntegra diante das adversidades, mas também revida quando necessário. O roteiro lhe confere uma dignidade inabalável.

O componente social também é suavizado pelo aspecto fantástico sugerido no título. A cena inicial traz música surreal e letreiros brilhosos, enquanto inserts apostam num inusitado momento musical e na caminhada da personagem contra um vento muito forte (imagem ao lado), sendo quase derrubada, mas ainda assim permanecendo de pé. Se você acha essa metáfora óbvia, espere para ver Marina refletida num espelho que deforma o corpo, ou abrindo um armário vazio que serve de herança simbólica do falecido. Lelio nunca vai muito longe ao buscar suas analogias: em Gloria, quando a personagem se irritava com o ex-marido, aparecia na casa dele com uma arma de brinquedo, que esguichava água. O jogo era simples: a arma real trocada pela arma falsa, e neste caso, a imagem real é trocada pela imagem distorcida.

Quando fogem do óbvio, os símbolos de Una Mujer Fantastica são reiterados até perderem o mistério (a chave filmada três vezes em plano próximo). Longe de ser um esteta, Lelio tem se mostrado um cineasta excepcional pelo olhar lúdico do cotidiano. No entanto, quando tenta embarcar no registro abertamente fantasista, seus recursos se tornam insuficientes: seriam necessários mais momentos como o instante musical, ou uma função mais potente dos mesmos para que pudessem impactar a narrativa. Pelo resultado final, fica a impressão de que outros inserts de fantasia foram cortados na montagem, ou que o projeto não teve coragem de assumir seu aspecto mágico até o fim. Apesar das deficiências no retrato do luto, o resultado é positivo: Una Mujer Fantástica constitui um belo retrato de personagens e uma potente descrição da transexualidade.

Filme visto no 67º Festival de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2017.