Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
A Casa que Jack Construiu

Confissões de um assassino em série

por Bruno Carmelo

Muitos espectadores devem correr para o novo filme de Lars von Trier em busca de cenas de violência extrema, assim como correram para Ninfomaníaca pelas cenas de sexo explícito. Mas eles estarão enganados, mais uma vez: o dinamarquês e sua equipe são os mestres do marketing. O fato é que as cenas de morte em The House that Jack Built são tão incômodas quanto as cenas de sexo em Ninfomaníaca eram excitantes, ou seja, não muito. Isso ocorre porque a violência não é o objetivo do projeto, apenas seu ponto de partida.

A comparação com Ninfomaníaca se justifica pela estrutura narrativa. Em ambos os casos, temos um protagonista viciado, que relata sua rotina de compulsões a um terceiro. Juntos, o criminoso e seu cúmplice discorrem sobre a natureza humana. De onde vem a pulsão de vida (o sexo)? E a pulsão de morte (o assassinato)? Este projeto seria irmão do anterior: enquanto Joe (Charlotte Gainsbourg) relatava sua trajetória sexual desde a infância para o intelectual Seligman (Stellan Skarsgard), agora é Jack (Matt Dillon) que conta sua prática de mortes desde criança ao intelectual e poeta Virgílio (Bruno Ganz), autor da Eneida, também citado na Divina Comédia de Dante.

Jack não demonstra ódio por suas vítimas, nem possui alguma característica visivelmente monstruosa – a não ser que a falta de empatia se encaixe nesta categoria. Aos olhos de pessoas próximas, ele se passaria por um sujeito comum, recluso, sem família. As mortes começam quase por acidente, e depois se repetem como um vício incontrolável. Jack só ataca mulheres e, como todo machista, acredita que elas são culpadas pelos atos dele. Uma das mulheres é atacada por reclamar demais, a outra, por ser ignorante, e uma terceira, por sua ingenuidade. O personagem está punindo as pessoas por suas falhas, e acredita ser ajudado por Deus, que lhe permite escapar dos crimes com impressionante facilidade.

Paralelamente, este engenheiro deseja construir a própria casa, citada no título. Entretanto, assim como o ciclo de mortes nunca é concluído, a casa também não se termina. É sempre preciso desconstruir e recomeçar, numa metáfora à compulsão dos ataques. O roteiro dedica bom tempo à comparação entre os atos de Jack e as obras de arte clássicas. Se a modificação da natureza para criar algo esteticamente agradável (catedrais, pinturas, livros) é considerada um gesto artístico, então por que as fotos tiradas dos cadáveres não seriam igualmente artísticas? A lógica é levada ao extremo como forma de provocação, mas serve para discutir a banalização do mal.

Para a surpresa do espectador, a trajetória do protagonista é regada a generosos momentos de humor. Seja pela inexperiência do assassino ou por seu transtorno obsessivo-compulsivo, que o impede de sair de um local do crime antes de deixá-lo impecável, Jack representa uma clara sátira, uma farsa. Seu percurso é mais simbólico do que realista: ele ilustra a facilidade com que se tira a vida de uma pessoa, porque os vizinhos não se importam mais uns com os outros, as famílias se distanciaram, a polícia não tem real interesse em desvendar casos. O mundo retratado na história é inconsequente, indiferente. Jack faz o possível para ser pego – e, por consequência, reconhecido em sua maestria – mas a sociedade está preocupada demais com o próprio umbigo. O projeto deixa a incômoda sensação de que qualquer espectador poderia ser um assassino, e nesta comparação sugere algo muito mais incômodo do que qualquer imagem de tiro ou tortura.

Lars von Trier mantém seus recursos estilísticos tradicionais: a câmera na mão oscilando livremente entre corpos e rostos, a narração professoral com devido senso de ironia, a divisão em capítulos, a música intradiegética ao invés da trilha sonora convencional. Além disso, faz inúmeras citações a si mesmo, incluindo trechos de quase todos os seus filmes precedentes. Ele inclusive ousa repetir a “piada” de que “compreende Hitler”, ao falar do papel deste como ícone histórico, como alguém hábil o suficiente para realizar tantas matanças impunemente. Depois de ser banido do festival de Cannes por este comentário, o diretor retorna a Cannes com um filme no qual reafirma a mesma ideia.

O egocentrismo se transmite igualmente nos diálogos um tanto pedantes entre Jack e Virgílio. Eles analisam um ao outro sem parar, com o auxílio de ferramentas teóricas, artísticas, psicanalíticas, sociológicas. O roteiro é verborrágico e arrastado em diversos momentos: entre cada assassinato, as cenas se estendem para incluírem grande quantidade de citações a artistas e filósofos. Na intenção de demonstrar a sua bagagem cultural, sua capacidade de análise e mesmo seu senso de autocrítica, o diretor fornece a obra e sua interpretação no mesmo pacote. Ao espectador, cabe o deslumbramento diante de muitos recursos esteticamente instigantes, porém resgatados de filmes anteriores, a exemplo das câmeras lentíssimas de Melancolia e das pilhas de corpos de Anticristo.

The House That Jack Built se conclui como um suspense eficiente e uma sátira mordaz, além de retomar a metáfora da casa de modo bastante original – provavelmente a melhor solução imagética do filme. No caminho, entretanto, dedica-se demais a fortalecer a imagem de seu autor e suas obras. Lars von Trier é verdadeiro protagonista deste novo filme. Assim como diversos criadores, ele tem a autoria não como ponto de partida, e sim ponto de chegada. O projeto é coerente com os traços do dinamarquês, mas pouco inventivo dentro de sua filmografia. Nesta fase de sua carreira, a assinatura de Lars von Trier o qualifica e prejudica em igual medida.

Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.