A formação de uma mulher trans
por Bruno CarmeloJacqueline Rocha Cortês não é uma celebridade, nem possui uma história necessariamente excepcional. O interesse no retrato desta mulher transexual e portadora do vírus HIV encontra-se no naturalismo da apresentação: a diretora Angela Zoé busca a identificação do espectador, algo notável num projeto sobre as minorias. Seria fácil valorizar Jacque por suas diferenças, mas o documentário prefere olhá-la como muitas outras mulheres que superaram dificuldades em suas vidas.
De maneira convencional e linear, o roteiro parte da infância de Jacque até a fase adulta, atravessando a adolescência, os primeiros amores, a descoberta do vírus... O maior trunfo do projeto é a própria figura da biografada. Jacqueline é espontânea, extrovertida, detentora de senso crítico sobre o mundo que a cerca. O discurso que poderia enveredar pelo vitimismo ganha ares de diário íntimo bem-humorado. Ao mesmo tempo, não ficam dúvidas quanto à identidade feminina da biografada, desde a mais tenra infância, pelos relatos comoventes da menina presa num corpo inadequado.
A diretora também possui a sensibilidade de expandir o caso da personagem ao compará-la com outros casos de preconceito. O marido de Jacque sempre foi homossexual assumido, até se apaixonar pela futura esposa; o irmão heterossexual é conservador, mas mudou suas opiniões pelo contato com a transexualidade na família; já outra irmã, negra, fala do preconceito racial que sofreu. Todos os entrevistados precisaram transformar sua visão de mundo, incluindo a protagonista, para se adequar às regras sociais e à própria identidade. A mistura frequente entre identidade de gênero e orientação sexual também é esclarecida com precisão.
No que diz respeito às escolhas estéticas da direção, Zoé acerta ao deixar a maioria dos depoimentos em voz off, eliminando a possível redundância dos numerosos depoimentos. É igualmente apreciável a busca por um ritmo lento, com direito a pausas entre as falas, ao contrário de documentários que correm para incluir o máximo de trechos interessantes possíveis. Meu Nome é Jacque possui espaço para a contemplação, incluindo imagens íntimas do corpo da protagonista.
Entretanto, nem todas as escolhas da cineasta impressionam. O excesso de trilha sonora sentimental e os efeitos digitais de flare são questionáveis, por forçarem uma aparência poética que as falas e as personagens possuem por si só. A música, em especial, evidencia a má escolha de ornamentar a imagem, como se os enquadramentos e o som não conseguissem transmitir o recado sozinhos. Chega-se inevitavelmente à impressão de uma reportagem melodramática, beirando o novelesco.
Mesmo assim, Meu Nome é Jacque mantém o interesse do começo ao fim, pela coragem como Zoé e a própria Jacque abordam esta história. O documentário transmite honestidade, ao contrário de diversos projetos sobre minorias que tendem a instrumentalizar seus retratados em nome da mensagem a transmitir. O aspecto mais belo do filme é sua capacidade de olhar para Jacque com empatia e respeito, de igual para igual.