Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
La Llamada

Deus é TOP

por Taiani Mendes

O Todo Poderoso aparece no meio da noite cantando "I Will Always Love You" para uma assustada adolescente num acampamento controlado por freiras e estamos apenas na primeira sequência de La Llamada. Estreando na direção cinematográfica, Javier AmbrossiJavier Calvo apresentam de cara o acontecimento inusitado que mais chama a atenção na sinopse, como que num teste de público: “O tom é esse. Gostou, continue. Não embarcou, desista.”. Quem confia e permanece é recompensado, pois a graça pitoresca da abertura não se trata de isca mentirosa e a comédia reserva outras passagens tão ridiculamente absurdas quanto ao longo de suas quase duas horas de loucura – que passam voando, apesar de certa irregularidade de ritmo própria de estreantes.

María (Macarena García) e Susana (Anna Castillo) são melhores amigas que enfrentam uma turbulência na relação, adotam prioridades opostas e perdem a cumplicidade. Enquanto Susana é a típica adolescente irresponsável, que bebe, fuma, transa, se droga, apronta, não reconhece autoridade, não faz muita coisa e sonha alto, María “larga essa vida” após ser abordada por um cantante Deus (Richard Collins-Moore). Despreparada para o inesperado contato, a garota sofre por não saber como reagir, atraída e amedrontada, e tem vergonha até de comentar o ocorrido com qualquer pessoa. Ele não parece com o que afirma o senso comum.

Rara história não de opressão juvenil pela religião, mas seu oposto, La Llamada é uma bem-humorada fantasia musical anarcocatólica que brinca com a ideia de adoração e incentiva a coragem diante da “chamada” à mudança, seja ela qual for – de estilo musical, de orientação sexual, de vida, de época, de sonho, de missão, de interesse, de crença...

Num fim de semana de embate geracional, revelações e transformações, María e Susana interagem com as tontas freiras Milagros (Belén Cuesta) e Bernarda de los Arcos (Gracia Olayo). Pouco mais velha que as meninas, Milagros tem ingenuidade de noviça e insegurança de jovem adulta, formando uma dupla de opostos com a tão animada quanto desatualizada Bernarda, recém-chegada ao acampamento A Bússola. “A música faz milagres, Milagros” é o bobo bordão da Irmã mais experiente e cantando/dançando as personagens vão descobrindo e expressando seus sentimentos mais sinceros, que no curtíssimo intervalo de tempo retratado na trama eclodem como fogos na noite de Ano Novo.

As quatro atrizes atuaram em montagens da peça (de autoria dos diretores/roteiristas) em que o filme é baseado e a intimidade com o texto certamente influenciou na naturalidade com que elas carregam a história. Belén, por escapar habilmente do fácil ridículo, e Anna, pela intensidade, são as que mais se destacam, enquanto Macarena não se sai tão bem nos momentos de tensão com o Dono do Mundo – há um exagero de caras e bocas e gestos indefinidos –, mas em geral não chega a comprometer.

A eclética trilha sonora tem sucessos de décadas passadas, hinos religiosos, música eletrolatina – ritmo favorito das protagonistas – e canções originais, além, é claro, de hits eternizados na voz de Whitney Houston. Batizado “La Llamada”, o tema principal fala em sentir a forte chamada "com a luz apagada e as pernas abertas" servindo à filosofia do filme de igualar a paixão carnal e a espiritual, ambas arrebatadoras, inexplicáveis e frequentemente incompreensíveis para os que olham de fora. Paralelos são traçados entre sexo e reza, amor e devoção, numa exploração dos vários sentidos do adorar. Parece polêmico, mas nem tanto, afinal as próprias freiras são, por definição, esposas de Cristo. O que os diretores fazem é entoar a ideia com irreverência e hormônios adolescentes.

De maneira criativa, divertida e provocante, os cineastas oferecem um musical religioso bem gay (do inglês, alegre, e também homossexual) que tem Deus brilhante e da zoeira estimulando a felicidade e o prazer, não o sofrimento e a contenção. Noções ultrapassadas são desconstruídas justamente pelas destemidas jovens que no começo nem queriam estar ali e, além do Senhor, são louvadas a liberdade, a aceitação e a amizade. A conclusão se é tudo ironia ou não depende da quantidade de fé e pureza no coração do espectador, que pode imaginar a entrega de María ao divino tendo Jesus como resultado ou buscar significados não tão singelos na escolha de um anglófono branco de meia idade para o papel do Criador e em seus esforços para seduzir uma jovem espanhola.