A tragédia do casal perfeito
por Bruno CarmeloStefan (Lukas Turtur) e Andreas (Philipp Hochmair) se amam. Os dois músicos trabalham juntos, moram juntos e têm os mesmos gostos: eles adoram o gatinho Moisés, sempre ouvem música clássica, cuidam do jardim e andam nus na metade do dia. Durante cerca de 30 minutos, este parece um comercial de margarina com dois gays perfeitos e sem conflitos. O roteiro nem se dá ao trabalho de diferenciá-los: a dupla surge como uma presença fusional e indistinta. Mas qual poderia ser o interesse desta sucessão de dias pacíficos?
O diretor e roteirista Klaus Händl decide introduzir, então, uma tragédia. Não uma crise qualquer – doença na família, perda do emprego –, mas uma reviravolta absurda que supostamente revela o lado sinistro de um dos dois. Händl, ator austríaco e frequente colaborador de Michael Haneke, decide investir no território moral e perverso do veterano, mas ao invés de extrair conflitos inerentes aos personagens, faz questão de embutir crises que não condizem com a personalidade apresentada, numa mecânica bastante artificial.
Quando a chocante reviravolta dá as caras, Tomcat se transforma por completo. A vida dos amantes se destrói, a calmaria quase caricatural é substituída por agressões contínuas. Enquanto o cineasta contempla com prazer insuspeito a decadência de Stefan e Andreas, o ambiente ao redor continua trazendo novos problemas aos dois – o acidente envolvendo o olho de um dos dois chega a ser risível – como se a natureza estivesse se vingando dos dois homens perversos. Ao contrário da ideia de que “os homens nascem bons, mas a natureza os corrompe”, vende-se a noção de homens intrinsecamente malvados, porém domesticados pela vida em sociedade.
É uma pena que a história se perca no prazer da destruição, já que Händl possui bom domínio da técnica, com mão segura para os enquadramentos e para a construção de clima. Seguindo a escola austríaca, o filme sabe muito bem como usar os sons fora do enquadramento e como explorar os planos fixos em scope para sugerir o isolamento dos personagens. Aos poucos, o casarão ensolarado se transforma numa mansão mal-assombrada de filmes de terror.
Os atores se saem bem na primeira parte, transmitindo naturalidade à relação com a música e com os amigos. Quando a tragédia se desenvolve, ambos soam exagerados em igual medida, como se o diretor tivesse explicitamente pedido para que atuassem uns dois graus acima da verossimilhança. Tomcat busca o imaginário grotesco da burguesia, cujo efeito é ainda mais potente por vir após o idílico segmento inicial. Esta é a maior perversão de Händl: alçar seus personagens ao cúmulo da perfeição apenas para vê-los cair de um ponto mais alto.
Talvez o resultado traga alguma reflexão sobre a obscura natureza humana e sua tendência a guardar um potencial perigoso dentro de si. Todos os indivíduos são capazes de atos horríveis? Sem motivo algum, por puro sadismo? Este filme parece acreditar que sim.
Filme visto no 24º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, em novembro de 2016.