Estar morto é a nova norma
por João Vítor FigueiraUma boa maneira de descrever a peculiaridade deste projeto que pode ser vendido como "filme de terror" é dizer que a cena mais intensa do filme é a sequência dedicada a um solo de bateria tocado pelo protagonista — um trecho que é um primo distante e punk do desfecho do excelente Whiplash - Em Busca da Perfeição — e não nenhum susto ou imagem grotesca. O diretor estreante Dominique Rocher propõe em A Noite Devorou o Mundo uma forma de combinar os códigos dos tradicionais filmes de zumbis com as características de um "filme de arte" (com seus momentos contemplativos, ritmo lento e escapes filosóficos). A mescla acaba monótona enquanto filme de gênero e menos densa do que poderia em termos dramáticos, o que não quer dizer que não haja espaço para boas ideias e momentos.
O norueguês Anders Danielsen Lie, destaque no drama Oslo, 31 de Agosto, interpreta o melancólico Sam, um homem que interrompe uma festa de sua ex-namorada em um espaçoso apartamento de Paris. Invadido por um sentimento de despertencimento naquela situação incômoda, ele deseja recuperar alguns objetos pessoais que esqueceu na residência. A interação com terceiros, especialmente com o atual companheiro de sua ex, não é das melhores. Ao encontrar seus pertences, Sam se tranca em um quarto e acaba pegando no sono. Quando ele acorda, no dia seguinte, o mundo não é mais o mesmo. Uma epidemia (que não é nem remotamente explicada ao longo do filme) atingiu a capital da França, transformando todas as pessoas — acredita Sam — em zumbis. Dali em diante, caberá ao personagem fazer o que julgar necessário para sobreviver. O enredo é baseado no romance homônimo do autor francês Martin Page sob o pseudônimo de Pit Agarmen.
O exame da solidão de Sam se dá de maneira pouco convidativa. Não sabemos quase nada sobre este protagonista. É necessária mais de uma hora de projeção até ele esboçar algum sentimento mais complexo como a saudade por alguma outra pessoa. Seria errôneo dizer que este é um filme em que "nada acontece". Acompanhamos o protagonista reunir mantimentos, vasculhar os demais apartamentos do prédio no qual está sitiado, criar peças musicais com objetos do cotidiano, vislumbrar o suicídio e passar por algumas situações em que sua vida é colocada em risco (embora os mortos-vivos deste filme sejam tão morosos que por vezes parecem "inofensivos", o que prejudica o estabelecimento de tensões maiores). O problema é que muitas dessas situações e ações não se transmutam em um exame mais profundo da personalidade do protagonista.
Por mais que falte dinamismo à narrativa, há comentários interessantes ao longo filme. A presença em cena dos zumbis de A Noite Devorou o Mundo podem remeter mais a uma zombie walk do que a um filme em que precisamos acreditar que eles oferecem uma ameaça real. Entretanto, a concepção da ação dos mortos-vivos é instigante o suficiente e permite que o público faça diferentes leituras sobre tais criaturas. Por vezes é como se todo o filme fosse uma metáfora para o lugar mental de Sam, com os zumbis agindo como seus demônios internos, uma representação explícita de sua falta de perspectivas e desânimo. Também é possível pensar nos mortos-vivos como figuras apáticas de uma Europa que acena para perigosos sentimentos nacionalistas ou como figuras privadas de sua potência pelo excruciante peso da vida moderna em um contexto de hipercapitalismo. "Estar morto é a nova norma", diz sam em determinado momento.
Anders Danielsen Lie entrega uma atuação crível e consistente, mas é difícil se identificar com seu personagem por conta das lacunas do roteiro. Sempre extraordinário, Denis Lavant interpreta um zumbi preso a um elevador com quem Sam conversa de forma unilateral. O ator de Holy Motors tem um talento ímpar para este tipo de personagem e engrandece cada frame em que aparece. Por isso, é uma pena que ele apareça tão pouco. A personagem de Golshifteh Farahani, outra presença secundária que atrai o olhar como um imã, surge perto do desfecho do longa-metragem para sacudir um pouco os eventos do filme, mas a brevidade de sua aparição soa quase como um desperdício.