Curdistão imaginário
por Bruno CarmeloCurioso, este projeto do iraniano Bahman Ghobadi. Conhecido por ficções como Tempo de Cavalos Bêbados (2000) e Tartarugas Podem Voar (2004), ele dirige desta vez um documentário político, mas cruzando de diversas maneiras o limite da ficção. Um letreiro no início da projeção informa o espectador: “Roteirizado a partir das vidas de Nariman Anwar e Helly Luv”. Para além do fato que documentários também possuem um roteiro, esse lembrete serve para alertar que as imagens neste caso partem de vidas reais, mas não se atêm à realidade.
As duas pessoas citadas nos letreiros são um instrutor de aviação curdo e uma cantora pop curda, ambos orgulhosos de suas origens e interessados em defender, através de seu trabalho, a soberania do Curdistão e de seu povo. Enquanto ele cria pequenos aviões batizados com o nome do país, ela dança em videoclipes, cercada por crianças locais. Ghobadi acompanha os dois, ouvindo-os falar sobre sua infância pobre, sobre a perseguição – iraquiana primeiro, iraniana depois – às famílias e outras dificuldades enfrentadas por não possuírem um estatuto reconhecido no mundo inteiro.
O viés humanista é louvável, sem dúvida. Os problemas aparecem na forma com que o cineasta filma este projeto. Para cada cena de claro viés documental, existem pelo menos duas fictícias, no caso, encenações de casos vividos na infância pelos dois entrevistados. O cineasta imagina um garotinho sorridente admirando os aviões que estão bombardeando a sua casa, e uma garotinha sonhando em dançar como a Beyoncé. Trata-se de trechos idealizados, nos quais a noção de um futuro melhor está necessariamente dissociada da política, e mais próxima da ilusão infantil.
O uso da ficção para imaginar a infância de Nariman e Helly, em si, não incomoda. Mesmo assim, esta escolha impede que o espectador crie suas próprias imagens mentais a partir dos relatos bastante detalhados dos dois curdos. O aspecto mais questionável do projeto é outro: os trechos encenados para a câmera que pretendem se passar por documentais. É comum que um documentarista peça às pessoas filmadas para reencenarem trechos de suas vidas diante das câmeras (pelo menos desde Nanook o Esquimó, em 1922), mas o nível de intervenção de Ghobadi em Uma Bandeira Sem País é tão grande que torna questionável a veracidade de suas imagens.
Por exemplo, um simples diálogo entre duas amigas é visto em três pontos de vista diferentes: o plano em Helly, o contraplano na amiga, e um plano de conjunto dando cobertura na montagem. Elas estão claramente repetindo aquele diálogo para o diretor, algo que soa ainda mais incômodo nos momentos sentimentais. Quando Helly e Nariman assistem ao mesmo tempo à notícia de que os curdos estão sofrendo bombardeios, ela chora em dois planos muito distintos: um ponto de vista subjetivo, da amiga no sofá, e outro plano gravado em cima de um móvel. Na impossibilidade de filmar estas duas imagens ao mesmo tempo – para além de limites de produção, uma câmera filmaria a presença da outra em cena – fica claro que a cantora encenou o choro para Ghobadi. No entanto, o cineasta apresenta estes trechos como parte de um documentário qualquer, uma simples apreensão da realidade.
O resultado pode ser criticado pela manipulação, pela necessidade do espetáculo e pela ficcionalização do real, prejudiciais ao discurso do diretor. O diretor iraniano sequer se preocupa em analisar a política ou a história. Ele se baseia unicamente nestes dois personagens roteirizados para construir uma visão de mundo sobre o Curdistão. O resultado é bastante amargo.
Filme visto na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2015.