Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Tempestade de Areia

Mãe, filha, esposa

por Bruno Carmelo

Toda família já deve ter atravessado algum momento em que a moral aplicada à sociedade não vale para as regras domésticas: são aqueles casos nos quais tal atitude pode ser tolerada no bairro, “mas não com a minha filha”, e tal prática sexual é desejada, “mas jamais com a minha esposa”. Tempestade de Areia, filme israelense sobre uma comunidade árabe, trata deste tipo de flexibilidade hipócrita das regras morais.

No centro da trama estão a jovem Layla (Lamis Ammar) e sua mãe Jalila (Ruba Blal). Elas vivem num lar pacífico, seguindo as regras do islamismo, com a presença de um pai descrito como caridoso e de mentalidade relativamente progressista. É interessante que o roteiro parta desta disposição de papéis, porque evita o maniqueísmo nas relações: não temos duas mulheres sofrendo nas mãos de um homem tirânico, e sim um grupo de personagens oprimidos pelos códigos que acreditam ser obrigados a aplicar.

Assim, Layla se apaixona por um garoto de outro vilarejo, enquanto Jalila não aceita o fato de o marido se casar com uma segunda esposa, que passa a viver numa casa mais luxuosa que a sua. Não existe uma união feminina contra os homens: as duas mulheres se sentem culpadas por não se encaixarem nas regras, e brigam muito umas com as outras a respeito da decisão correta a tomar (fugir com o namorado, abandonar a família, enfrentar a segunda esposa). Quando a subversão das regras aparece como única possibilidade de felicidade, toda decisão se transforma num dilema moral.

A diretora Elite Zexer capta os embates familiares de modo natural, deixando os gestos cotidianos, como a limpeza da casa e a compra de alimentos, refletirem as relações de poder. Afinal, o pai dá ordens à mãe, que dá ordens à filha, que cuida da educação das irmãs menores. Os avós, por sua vez, se impõem à figura do pai e da mãe. O mundo regrado desta comunidade religiosa opera como uma bomba relógio prestes a explodir, por nunca levar em conta as vontades individuais. A ciranda de personagens age de acordo com o que se esperaria dela, em nome da honra, da tranquilidade e da manutenção do status quo.

“Mas sempre existe outra opção”, contesta a filha ao pai que se diz obrigado a casá-la com outro rapaz, da escolha dele. Talvez este seja o tema principal deste belo drama: a autonomia do indivíduo num mundo hierarquicamente estratificado. Tempestade de Areia trata de tais temas com uma agilidade notável da montagem, combinando cenas contemplativas com uma série de reviravoltas verossímeis envolvendo as duas protagonistas. O drama pulsa com ritmo de suspense.

A cineasta demonstra rara firmeza na direção e na condução dos atores para uma artista em seu primeiro longa-metragem. A estrutura segue os princípios básicos do realismo social, com a câmera na mão colada aos rostos e corpos, evitando movimentos mirabolantes da imagem ou efeitos preciosistas de iluminação e trilha sonora. Trata-se de um filme de personagens no sentido estrito do termo: é a movimentação e o conflito deles que dita o tom e os rumos da trama. Este é um projeto de estética refinada, embora não particularmente inovadora. Mas as imagens estão sempre a serviço de um louvável humanismo.

Filme visto na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2016.