As feras do palácio
por Bruno CarmeloEnquanto filme de época, baseado em fatos, A Favorita traz todo o esplendor visual esperado de uma produção do gênero: os figurinos e acessórios são deslumbrantes, as locações transmitem a opulência da corte inglesa do século XVIII, a iluminação trata de acentuar os contrastes da luz do dia, entrando pelas janelas sem clarear por completo os imensos cômodos ornados em madeira. Para quem estiver buscando o retrato do luxo e a fidelidade aos modos, nomes e dados, o projeto dirigido por Yorgos Lanthimos terá cumprido o seu papel. Este é um de seus principais valores: honrar o período histórico a que se refere, mesmo diante de uma história absurda.
No entanto, o espectador pode perceber algo estranho neste retrato. A direção de fotografia utiliza lentes grande-angulares extremas, de modo a causar distorções próximas do efeito do olho mágico das portas. Os nobres se divertem com coelhos e patos correndo pelos suntuosos corredores, enquanto as carcaças de animais se empilham sobre as mesas do jantar. Quando conversam, ao invés do linguajar polido conveniente à etiqueta, proferem insultos e vulgaridades. Em outras palavras, este filme retrata o luxo de modo crítico, sem aderir ao mesmo. A vida de privilégios não é apresentada ao espectador de maneira desejável, e sim como uma configuração grotesca e artificial.
Artificiais, aliás, são as relações e os arranjos feitos dentro do palácio. Passado na maior parte do tempo nos cômodos e jardins, A Favorita aborda um universo-bolha no qual a rainha Anne (Olivia Colman) decide os rumos do país e as circunstâncias da guerra sem ter a mínima ideia do que ocorre nos campos de batalha. Paralelamente, os nobres desconhecem as vontades do povo e suas dificuldades diárias. Para eles, as decisões se tornam questão de caprichos ou favores: decreta-se o aumento de impostos para irritar algum oponente, mantém-se a guerra porque um conselheiro acredita que seria uma boa escolha. O drama funciona como impecável representação da alienação dos ricos.
O trio de atrizes se delicia com as rivalidades da corte. Sarah Churchill (Rachel Weisz) e Abigail Masham (Emma Stone), primas e rivais na disputa pela atenção da rainha, oscilam entre a ternura e a agressividade, a amizade e a manipulação. O roteiro fornece amplo desenvolvimento para as três protagonistas, com direito a nuances que as atrizes captam com destreza – em especial Colman, que faz milagres mesmo limitada a uma cadeira de rodas, arrastada pelos labirínticos corredores do palácio. O filme estabelece certo parentesco com Ligações Perigosas, nos quais a sedução constitui a principal arma de manipulação entre os poderosos, com o diferencial de que aqui ninguém se aproveita dos outros pelo simples fato de poder fazê-lo: todas as mulheres têm algo a ganhar, política e socialmente, com o uso de sua malícia e seus corpos. O jogo, neste caso, não é mera questão de vaidade.
No terço final, o roteiro se estica em excesso, perdendo sua potência quando separa Sarah e Abigail. Yorgos Lanthimos, o rei dos filmes perversos, desumanos e brutais, atenua seu niilismo em prol de uma abordagem ainda cínica, mas de tom predominantemente melancólico. Depois de tanto fel, a última parte minimiza as experiências de câmera, troca a trilha sonora assustadora por dedilhados clássicos ao piano, substitui os diálogos sarcásticos por silêncios. O final anticlimático pode ter sido escolhido para fugir às conclusões clássicas, evitando desenhar uma recompensa exata para cada personagem (é um alívio terminar um drama histórico sem os habituais letreiros explicativos). A Favorita se encerra menos feroz do que começou, e também menos divertido. Mas talvez nesta concessão se encontre o humanismo necessário para abordar um episódio real de modo crítico, porém respeitoso.
Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.