Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Maresia

Barco à deriva

por Rodrigo Torres

Maresia é fruto de uma paixão de longa data do cineasta Marcos Guttmann. Como grande foi o tempo para a realização filme: dez anos. O resultado, porém, não condiz com toda a afeição do diretor estreante em longas-metragens. Nem com a qualidade da obra adaptada: o premiado livro "Barco a Seco", de Rubens Figueiredo.

Duas linhas temporais distintas correm paralelamente em Maresia. Na principal, contemporânea, seguimos o perito em arte Gaspar Dias, especializado num pintor morto misteriosa e precocemente, Emilio Vega. A segunda é situada na década de 1930, onde o próprio artista é retratado em sua personalidade irascível, seu vício em bebida e total desprendimento, da vida e de sua arte. E ambos são interpretados pelo mesmo ator; uma escolha duplamente bem-sucedida.

Em primeiro lugar, pelo fato de o protagonista ser o talentoso Júlio Andrade, totalmente distinto em cada persona. Depois, porque a opção reflete a obsessão de Gaspar por Vega, tão grande que ele se enxerga como o ídolo. Essa ideia é ainda ilustrada por uma série de coincidências, da paixão pelo mar ao apreço por vinho. Quando enfim identifica um quadro pintado pelo artista, Gaspar burla as regras de uma galeria de arte e acende um cigarro — num clichê pós-coito que reflete sua fixação quase sexual pelo ídolo.

Esse apuro estético está presente em todo o filme. A ótima fotografia de Alexandre Ramos evoca bem a dualidade entre o artista, de veia calorosa, e a frieza do perito, por exemplo. Já a trama, derrapa. Algumas diferenças fundamentais distanciam — em qualidade — a adaptação do Prêmio Jabuti de Literatura. Em "Barco a Seco", há todo um aprofundamento sobre o passado de Gaspar, órfão, criado por uma família pobre que não é sua, justificando o porquê de sua projeção no outro; sua fuga de si, seu "mergulho num espelho". Em Maresia, o personagem é pouco complexo, tornando sua severidade no ofício e obsessão pela alteridade pouco justificada. 

Irregular em sua narrativa alternante entre o envolvente Vega e o desinteressante Gaspar, Maresia acaba apostando num mistério que não existe: o real paradeiro do pintor, que é óbvio e sem graça. Se o filme vai bem na reflexão sutil sobre o ofício do crítico e a vaidade envolvida, sua curta duração (bem-vinda em obras de ritmo tão lento) limita o desenvolvimento dos valiosos subtemas de "Barco a Seco", como identidade, o valor da arte, autenticidade e outros. E impede Júlio Andrade de brilhar ainda mais; como teria a bordo de um veículo mais potente.

Filme visto no 26º Cine Ceará, em junho de 2016.