Expressionismo em cena
por Lucas SalgadoUm dos mais belos movimentos artísticos e culturais do século XX, o Expressionismo é marcado por seus inúmeros pintores conhecidos, mas também influenciou no cinema, na fotografia e, inclusive, na música. E até hoje é uma referência artística, como vemos na nova animação nacional Tito e os Pássaros, exibida em competição no Festival de Animação de Annecy, na França, em 2018.
Dirigido por Gustavo Steinberg, Gabriel Bitar e André Catoto, o longa tem um traço muito particular, que abraça as imperfeições - como fica claro no desenho de seus personagens - e valoriza a noção de cinema-pintado. O resultado é uma experiência visual deslumbrante, que reforça o ótimo momento da animação brasileira dos últimos anos, capaz de entregar produtos tão interessantes (e variados esteticamente) como Uma História de Amor e Fúria, O Menino e o Mundo e Lino - Uma Aventura de Sete Vidas, para ficar em três exemplos recentes. Nota-se que são animações completamente diferentes, seja do ponto de vista narrativo, seja com relação ao traço e técnica de animação.
Tito e os Pássaros apresenta não apenas o visual de uma pintura expressionista, como faz de sua história algo que ganha força a partir da imagem. Tito é um jovem garoto de dez anos que vive com a mãe. O pai, um inventor, deixou os dois após um acidente com uma de suas máquinas. Quando uma epidemia do medo passa a atingir o mundo, Tito e seus amigos tentarão descobrir alguma forma de salvar a população. Para isso, buscará a ajuda dos pássaros.
Escrito por Eduardo Benaim e Gustavo Steinberg, a partir de argumento do primeiro, o roteiro se comunica muito com os dias atuais, seja no Brasil, em que figuras vendem sensacionalismo nas telas da TV e nos programas de governo, como no mundo, em que a indústria do medo parece se aproveitar da irracionalidade das pessoas e a facilidade das mesmas em se deixar tomar pelo pânico. E o mais interessante, é que o filme faz isso a partir do olhar de uma criança. Há a alegoria dos pássaros é claro, mas há também a indicação/desejo de que pode partir de uma nova geração a descoberta de uma salvação.
Denise Fraga, Mateus Solano, Matheus Nachtergaele e Otávio Augusto são os nomes mais conhecidos do elenco de vozes. Solano dubla Alaor, que é uma espécie da antagonista da história, um sujeito que lucra com o medo da população. O ator realiza um belo trabalho de voz, transmitindo bem a sensação de loucura/ganância, como um bom vilão da Sessão da Tarde que destruiria um orfanato para construir uma quadra de tênis.
Voltando a abordar a questão do expressionismo, é interessante notar que Tito e os Pássaros é um filme infantil que não abre mão de ser assustador. Ao tratar do medo, não havia como ser diferente. Pinturas como O Grito, de Edvard Munch, parecem referências claras, não necessariamente no traço, mas na atmosfera, especialmente na reação das pessoas à referida epidemia. O filme usa uma trilha sonora original de Ruben Feffer e Gustavo Kurlat, que é parte importante da criação do clima e da experiência do espectador. De certa forma, remete um pouco à parceria Tim Burton e Danny Elfman, especialmente nas animações do diretor.
A produção, como tratado acima, tem boa parte de sua força na estética. A trama, embora com boas alegorias, é um pouco simples. O que não é necessariamente ruim, afinal oferece personagens carismáticos e cativantes. Incomoda, no entanto, o fato de Buiu, um amigo próximo de Tito, filho da empregada doméstica, não possuir nenhuma fala no longa. A intenção parece clara de reforçar ainda mais a subrepresentação e a exclusão daquele personagem, que é adorado pelas crianças, mas que não existe para os adultos. Não há de se dizer que o filme trata mal este personagem. Buiu é mostrado como amigo carinhoso e inteligente, mas num momento que se aborda tanto a questão do lugar de fala, me parece um equívoco deixar sem voz uma criança que já tem tão pouco.
Ainda assim, Tito é um filme original, divertido e muito bonito, que cumpre o objetivo de ser um deleite visual e ao mesmo tempo fazer pensar.
Filme visto no Festival de Annecy, em junho de 2018.