Por trás do que foi escrito
por Barbara DemerovBiografias de pessoas que marcaram a história do mundo geralmente se entrelaçam com uma narrativa que cresce na medida em que o protagonista encontra seu propósito, o que pode acontecer numa linha do tempo mais longa, da infância à idade adulta. Com Allan Kardec, seu propósito não apareceu nem na infância ou na adolescência: apenas aos 50 anos o educador francês encontrou a força e o talento que perdurariam não só pelo resto de sua vida como também através de gerações. Kardec ambienta-se neste exato momento da vida do codificador do espiritismo e permeia entre o processo de encontrar sua crença até as divergências entre sua missão e a Igreja Católica.
Ligando o drama pessoal do protagonista (nascido Hippolyte Léon Denizard Rivail) até quando este insere o nome Allan Kardec para assinar toda sua obra literária sobre a doutrina espírita, o filme de Wagner de Assis não busca desenvolver uma narrativa complicada demais para o espectador leigo com relação à história real, mas, ao mesmo tempo que compila os principais acontecimentos lineares de modo detalhado, não adentra muito no processo pessoal de Kardec e no reconhecimento de sua nova forma de ver a vida – e o que a sucede.
Por mais acurados que sejam os acontecimentos, há um foco mais potente dentro da narrativa (e que vai aparecendo mais a partir do segundo ato): o poder que o catolicismo impôs acima dos espíritas, evitando com que suas crenças fossem liberadas para o mundo mesmo que por um breve período ou provocando revolta dos fiéis da Igreja. Com isso, todo o processo de descobertas de Kardec soam um tanto corridos, como se houvesse a pressa de cair diretamente nas dificuldades encontradas a partir do momento em que O Livro dos Espíritos foi publicado, em 1857. No entanto, a linha do tempo é precisa e estabelece todos os pontos principais da história do autor sem que haja pedantismo ao redor da importância de sua presença na religião.
A necessidade de inserir um "antagonista" na história (no caso, a Igreja Católica) é válida, mas os momentos em que Kardec e sua esposa Amélie (Sandra Corveloni) adentram cada vez mais para dentro da realidade espírita (ele deixando o ceticismo de lado e ela passando a ser uma grande apoiadora) são muito mais interessantes e bem construídos, pois há tempo para o roteiro apresentar outras figuras que fizeram parte da jornada de pesquisa até a publicação do primeiro livro de Kardec. As jovens Caroline Boudin, Julie Boudin e Ermance De La Jonchére Dufaux são algumas médiuns que ajudaram o professor a finalizar seu livro na época e formam uma importante parcela da história, mas ainda assim existe a falta de mais momentos com estas personagens antes da "caça às bruxas" começar. Como a enorme quantidade de cartas que o casal Kardec recebe em sua casa após a publicação do primeiro livro, é inevitável saber que há mais conteúdo dentro das lacunas entre os acontecimentos narrados.
É notável ver a atuação consistente de Leonardo Medeiros no papel de Rivail/Kardec e como sua postura séria combina com a trajetória de evolução de seu personagem; assim como a presença mais leve de Corveloni como Amélie Gabrielle Boudet transpõe uma dinâmica interessante entre o casal, mas que não traz tanto impacto no sentido amoroso – é muito mais uma parceria de trabalho e uma troca sincera de visões que vemos em tela. Mesmo sabendo que há muita estima entre ambos, existe uma certa distância que nunca é falada, mas que acaba sendo bem aproveitada em alguns momentos – como na cena do jantar silencioso em que a comunicação se dá com toques na louça, emulando a comunicação mediúnica.
Kardec é uma biografia que exprime bem o tom da época em que a história aconteceu (muito disso graças à ótima fotografia e direção de arte) e entrega de fato todas as informações para entendermos quem foi o homem que criou a doutrina espírita e garantiu milhões de adeptos à sua forma de ver a vida, a morte e Deus. Porém, mesmo com tanta base, o filme deixa de fazer um estudo de personagem para dar espaço a uma narrativa que prioriza a visão geral do início do espiritismo, e não uma mais intimista.