Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Dunkirk

A guerra é feita por anônimos

por Bruno Carmelo

Dunkirk chega aos cinemas na época em que a imprensa e o público tentam discernir o status particular do diretor Christopher Nolan dentro da indústria. Por um lado, ele trabalha pelas regras do mercado, elaborando grandes produções de super-herói, contratando estrelas para os papéis principais e produzindo ficções científicas de outros diretores. Por outro lado, se recusa a filmar com tecnologia digital, evita o 3D, aposta no formato antigo do 70mm e se posiciona contra exibições em telas pequenas, incluindo o lançamento de filmes diretamente em plataformas de streaming.

Nolan é visto ao mesmo como um visionário e um conservador, um autor popular e culto. Sua posição de “outsider dentro do sistema” faz com que a imprensa recorra a hipérboles absurdas para descrevê-lo: enquanto os britânicos o comparam a Stanley Kubrick, círculos franceses o reduzem a um artesão de obras redundantes, nas quais o som repete a imagem. Os dois soam exagerados. Além de acirrar as discussões, este novo filme serve para sublinhar as imensas qualidades do cineasta e reafirmar suas fraquezas recorrentes.

Como proposta visual, Dunkirk é excelente. O diretor tem plena consciência dos ângulos, lentes e movimentos de câmera adequados para provocar a máxima experiência de tensão. O cenário da guerra é captado de maneira ao mesmo tempo grandiosa, pela amplitude das praias, mares e céus, e também intimista, por se focar em dramas humanos pontuais, silenciosos, envolvendo a vida de anônimos. As cenas de Tommy (Fionn Whitehead) correndo com uma maca pela praia, agarrando um barco em movimento ou se escondendo entre as vigas de um píer são muitíssimo bem filmadas e montadas.

Ao invés de captar as cenas com distância contemplativa, a câmera se posiciona no meio da ação, entre os soldados espremidos na areia ou no fundo do mar, quando um navio explode. A imersão é tão eficiente que relembra a capacidade do cinema em 2D de explorar sensações tão bem quanto qualquer 3D. Paralelamente, a trilha sonora de Hans Zimmer, com seus violinos tensos, consegue compor uma melodia convergente com as explosões e os motores de avião, a ponto de se tornar difícil separar música de ruídos. Cada enquadramento, cada movimento, cada som é muitíssimo bem pensado e executado.

O projeto também impressiona pela ousadia narrativa e comercial. Nolan cria uma história dividida em três vertentes, cada uma com um protagonista: o garoto Tommy tentando fugir da praia, o patriota Dawson (Mark Rylance) indo voluntariamente à batalha, e o piloto Farrier (Tom Hardy) tentando destruir aviões inimigos. A trama demora em conectá-los, e não revela imediatamente a ambiciosa relação de temporalidade entre os três segmentos. O resultado é um projeto sem protagonismo definido, com poucos atores famosos, em trajetória não linear, e que não perde tempo explicando particularidades da guerra.

Além disso, Dunkirk evita a sucessão de explosões e cenas de heroísmo. O que Nolan entende muito bem – e que Michael Bay ainda não compreendeu – é que uma explosão só possui impacto se vier após a calmaria, e um diálogo potente faz sentido apenas entre momentos de silêncio. Bombas ininterruptas se tornariam entediantes, porém o roteiro evita a saturação ao investir na potência de olhares e gestos. A imagem de um pé na areia, ou a negociação silenciosa para tapar buracos de um barco dizem mais sobre cumplicidade do que discursos repletos de frases de efeito. Durante dois terços de sua duração, o resultado é tão grandioso no escopo das imagens quanto contido em termos de melodrama. Ele chega a se tornar brutal na trama do piloto cuja ação se limita a matar ou ser morto, atirar e se defender. Mais simples que isso, impossível.

Apesar de tantas qualidades, a produção tem seus revezes. A curiosa direção de fotografia oscila entre cores completamente realistas, nas tomadas aéreas, e cenas ultra saturadas, como se viessem de um espetáculo em Technicolor de 60 anos atrás. A subtrama envolvendo o garoto George (Barry Keoghan) soa abrupta, neste que é o segmento mais fraco da história, por tentar incluir em poucos minutos temas grandiosos como o perdão, o rancor e a vingança. Os momentos naturalistas de sobrevivência, envolvendo Tommy, funcionam muito melhor.

O maior problema se encontra no terço final, quando o heroísmo sabiamente evitado durante mais de uma hora aparece com força. Rumo à conclusão, o diretor abraça a trilha sonora lacrimosa, as cenas de sacrifício ao pôr do sol e a canonização quase imediata dos soldados resgatados. Este é o aspecto spielbergiano que desperta tantas críticas a Nolan: a necessidade de concluir sua trama com a reafirmação didática dos valores da tradição, família e propriedade, após uma longa narrativa que não trabalhava necessariamente estes temas. Nolan, como Spielberg, confia na capacidade cognitiva de seu público até certo ponto, contanto que a ousadia seja domesticada no final.

Como retrato de guerra, o projeto tem despertado críticas justificáveis. A evacuação de mais de 300 mil soldados em 1940 foi fruto de um esforço conjunto de britânicos, franceses e tropas magrebinas, mas o roteiro retrata apenas a coordenação das tropas britânicas. O único francês retratado na história é salvo por britânicos, e o personagem do Comandante Bolton (um brilhante Kenneth Branagh) dá a entender que os colegas franceses foram salvos graças à boa vontade do vizinho europeu. Para cada personagem naturalista e simples com Tommy, existe um mártir como Farrier.

Por fim, Dunkirk se revela um filme excepcional para representar o ambiente, as cores, as texturas e os sons da guerra. Em outras palavras, ele trabalha muito bem as sensações deste período, mas não possui o mesmo êxito na hora de pensar a guerra. Além de afirmar que os soldados esperavam “por um milagre”, ele se abre com uma frase sobre as tropas encurraladas “pelo inimigo” (Mas quem é esse inimigo? O que ele pretende obter neste confronto específico? Qual foi o papel de Dunkerque dentro da Segunda Guerra?). O filme torna-se politicamente vago, tão preocupado em usar aviões reais e uniformes idênticos aos da época quanto displicente ao investigar as questões geopolíticas envolvidas. Uma guerra é feita de indivíduos e de pequenos gestos, é claro, mas também é movida por nações, com interesses políticos e econômicos muito específicos. Dunkirk é um projeto magnífico quando se dedica aos indivíduos, porém negligente quando retrata coletividades.