Depois do caos
por Francisco RussoPor mais que esteja intrinsecamente associada ao público infantil, a animação não é exclusiva para menores. E não estamos falando dos filmes "para adultos que crianças podem assistir", especialidade maior da Pixar, mas de produções que realmente invistam em temas profundos e reflexivos, que sejam também um espelho da sociedade. A Ganha-Pão, indicado ao Oscar 2018 que chegou ao Brasil diretamente pela Netflix, integra este grupo.
Dirigido pela britânica Nora Twomey e coproduzido por cinco países, The Breadwinner (no original) é um retrato clínico e desolador acerca da vida no Afeganistão, terra dos talibãs. Mais do que propriamente denunciar suas práticas, este longa protagonizado por mulheres busca compreender como o país chegou ao estágio retratado, em que à mulher cabe procriar e nada mais. O início verborrágico atende este objetivo, resumindo em poucos minutos séculos de lutas onde conquistadores entraram e saíram, à custa do sofrimento da população local. Em meio ao caos, ascendeu o extremismo que condenou às mulheres a soturna e emblemática burka.
Apenas por este preâmbulo, já é possível discorrer sobre os reflexos do caos e o quanto a ausência de alguma ordem possibilita que absurdos ganhem corpo apenas por serem viáveis. Entretanto, A Ganha-Pão vai além ao rapidamente abandonar o didatismo histórico para representar, no dia a dia, os reflexos de tal política. É quando entra em cena a jovem Parvana.
Filha de uma escritora e de um professor, Parvana sabe ler e escrever - ao contrário da imensa maioria de suas conterrâneas. É ao seu olhar que toda a narrativa acontece, discorrendo tragédias humanas tão cotidianas que nem são mais combatidas, apenas evitadas - quando possível. É neste ponto que está a imensa tristeza deste longa-metragem: notar, dia após dia, o acúmulo de absurdos que soam absolutamente normais. Da prisão abusiva do pai à negativa das pessoas em vender comida à uma criança desacompanhada, por mais que ela suplique por ajuda, A Ganha-Pão dói, profundamente, por apresentar a face feia de uma sociedade raivosa e disposta a fazer o que for necessário, em nome de uma aparente tranquilidade.
Nesta profusão de dores, Twomey tenta trazer algum alento a partir de uma trama paralela, lúdica, onde Parvana conta uma história inventada. É interessante notar a dualidade nos traços de animação: a paleta de cores em tons pastel da realidade se converte em algumas (poucas) cores mais vivas, com os personagens ganhando movimentações típicas de fantoche. Entretanto, com o decorrer do filme, mesmo esta válvula de escape entrega um demolidor soco no estômago.
Dolorosamente real, A Ganha-Pão é daqueles filmes que destroem a alma, mas são necessários pela urgência do que tratam. Da negação da identidade às mulheres ao desespero de uma mãe em defesa do filho, a animação entrega um punhado de situações devastadoras, ao mesmo tempo em que ressalta a necessidade da cultura como resistência ao autoritarismo. Seu único leve revés é um certo excesso na vilanização de um personagem, mas ainda assim compreensível dentro de um contexto mais amplo. Excelente filme, um dos melhores lançados no Brasil em 2018.