Críticas AdoroCinema
4,5
Ótimo
A Morte de Stalin

Tragicomédia do poder

por Bruno Carmelo

É curiosa a chegada desta comédia aos cinemas em pleno 2018, quando os governos liberais resgatam o fantasma do perigo vermelho, apesar de nenhum levante comunista se insinuar no horizonte. As práticas soviéticas são cercadas de mistérios, mitos e ignorância em relação aos fatos - vide a própria morte de Stalin, interpretada de maneiras distintas por historiadores. Diante de tamanha imprecisão, chega a surpreender o modo como A Morte de Stalin consegue ser ao mesmo tempo hilário e bastante fiel aos fatos mais conhecidos.

O diretor Armando Iannucci, especialista em sátiras políticas, se distancia da obrigação de realismo. Ele trabalha com um elenco de americanos e britânicos, falando em língua inglesa sem sotaque russo, e toma a liberdade de enxergar os principais líderes soviéticos como um grupo de homens inseguros, ambiciosos, atrapalhados, tirânicos, hipócritas. O filme satiriza as execuções, o abuso sexual, as prisões em massa. A comédia funciona por oposição entre o texto cômico e a imagem grave: embora faça piada sobre mortes, trata de revelar a seriedade da situação pelas cenas explícitas. A trama preserva o povo para atacar os poderosos, criticando portanto as estruturas de poder.

O motor principal da narrativa se encontra nos diálogos entre o vice de Stalin, o chefe do governo secreto, o diretor das forças armadas, os ministros e outras figuras que cercavam o líder soviético. Os nomes reais se mantêm, assim como uma quantidade surpreendente de detalhes, que vão desde o cadáver de Stalin numa poça de urina até a morte da equipe de hóquei num acidente de avião. Ianucci não reinventa a História, apenas interpreta-a de modo corrosivo, com diálogos intermitentes: a cada ordem para executar um opositor, os personagens discorrem sobre a descarga do banheiro, a cada plano para assumirem o governo, brincam com o espartilho usado por um deles. Estes elementos passam a conviver num mesmo universo.

O conflito, aqui, diz respeito à imagem. Os homens discutem qual imagem deveriam construir sobre esta morte e sobre o estado da União Soviética. Eles escolhem o seu melhor retrato, as condecorações perfeitas para o funeral, as cores das flores, as texturas das cortinas. Os personagens são diretores de um espetáculo dentro do espetáculo. A estética incorpora a fluidez dos símbolos ao riscar pessoas de fotos oficiais ou criar uma longa sequência que mistura a perseguição física e a perseguição ideológica aos opositores do regime. A câmera se mantém ágil, focada nos rostos dos personagens, acompanhando-os enquanto perambulam por palácios, quartos, salas de reunião. O ritmo é febril, equilibrado por um humor sofisticado, que jamais apela para clichês fáceis.

O elenco representa um dos grandes trunfos de A Morte de Stalin. Jeffrey Tambor, Steve Buscemi, Simon Russell BealeMichael PalinJason Isaacs possuem uma desenvoltura excepcional para a comédia “séria”, baseada no sarcasmo, nos tempos mortos, no desconforto. Andrea Riseborough rouba a cena sempre que aparece, e Paddy Considine ganha uma pequena, porém importante cena na parte inicial. O elenco combina tipos de humor diferentes - mais expressivo e físico para Buscemi e Palin, mais contido para Beale e Tambor, por exemplo - em personagens de construção igualmente distinta, o que confere um relevo invejável para o roteiro. Embora tenha cerca de dez personagens principais, o filme confere a cada um deles uma personalidade clara, uma maneira específica de agir e se comportar.

Os méritos recaem principalmente sobre Ianucci, capaz de orquestrar a biografia sem jamais parecer hermético ou pedante. O humor teria potencial para dialogar com o público médio, pelo teor semelhante ao da série Veep, do mesmo criador. No entanto, possivelmente em função do tema, ganhou uma distribuição limitadíssima nos Estados Unidos. Na Rússia, foi alvo de censura pelo governo. Sem surpresa: as melhores comédias e os melhores filmes políticos são sempre aqueles que incomodam.