Ele é uma criança e entende tudo
por Taiani MendesEspremido entre China e Índia, o Nepal perdeu dezenas de milhares de habitantes numa longa guerra civil entre maoístas e militares na década passada. Nas Estradas do Nepal apresenta parte dessa trágica história a partir das experiências do pequeno Prakash (Khadka Raj Nepali), um dalit, portanto considerado intocável e impuro, que vive com o pai e a irmã no porão da casa do chefe da aldeia e tem como melhor amigo o neto do patrão, Kiran (Sukra Raj Rokaya).
Pela primeira vez em décadas, o rei do país prepara uma visita à região e os preparativos de seu banquete fazem com que todos vendam suas galinhas para os organizadores da festa. Bijuli (Hansha Khadka), irmã de Prakash, consegue surrupiar uma, a última criada por sua falecida mãe, e a oferece ao caçula, que batiza a nova mascote da casa como Karishma. Incomodado com os cacarejos noturnos, indicativos de mau agouro, o pai se livra da galinha e Prakash, indignado, se empenha para recuperá-la de qualquer forma, tendo como cúmplice o amigo. O maoísmo está à espreita, mas Prakash acaba se tornando vítima do capitalismo ao ter que correr atrás de centenas de rúpias para comprar de volta sua querida companheira.
Não espere ver longos planos das famosas montanhas, Himalaia, gelo derretendo, as imagens de sempre. O filme de Min Bahadur Bham trata das relações humanas e como elas se organizam. No caso, de maneira complicada. Complicadíssima. Os dalits sofrem muita discriminação e, apesar das ambições, não encaram chances reais de subir na vida – ainda que o pai de Prakash afirme com fé que o estudo deixará o menino "descolado". Seduzidos ainda na escola pelos "programas culturais" maoístas que prometem revolução social, jovens como a irmã do protagonista veem na guerrilha a única saída viável, enquanto as privilegiadas, como a irmã de Karin, têm a certeza de pomposos casamentos arranjados.
Aproveitando o frágil cessar-fogo em vigor, Prakash gasta seus momentos livres correndo atrás de recursos, brincando, sonhando com bons negócios, imaginando templos que jamais poderá adentrar por sua condição inferior e aguentando desaforos de seu único amigo fiel, por diversas vezes cruel – “às vezes você me machuca, me preocupo com o que diz”, ele assume em momento tocante. Bastante coisa acontece nos compactos 90 minutos e, apesar das longas distâncias percorridas, tudo é rápido e fluído, mérito do diretor estreante e de seu parceiro na autoria do bem montado roteiro, Abinash Bikram Shah. Sem necessidade, o realizador escancara sua opinião sobre os comunistas, introduzidos como ridículos e sequestradores, mas não deixa de abrir espaço para a relativização usando o protagonista, que pensa sofrido na irmã sempre que escuta algum comentário radical no estilo "morte aos maoístas!".
Representante do Nepal no Oscar 2017 (caiu na primeira fase, assim como Pequeno Segredo), o drama dá uma curiosa alfinetada no cinema indiano durante uma sequência passada numa... sessão de cinema e é todo muito belo em seus movimentos lentos e atuações naturalistas. Abordar temas duros usando crianças como protagonistas – para dar aquela suavizada – não é novidade, porém continua funcionando quando bem executado. É o caso de Nas Estradas do Nepal, que ainda ganha pontos extras por seu surpreendente, brutal e intenso ato final e termina fazendo referência ao lema do país: "a mãe e a terra-mãe valem mais que o reino dos céus".