Quase história
por Bruno CarmeloÉ muito difícil entrar no universo cinematográfico de Garoto. Um casal jovem encontra-se numa espécie de floresta, sozinhos. Nenhum dos dois tem nome. Ele não fala uma palavra sequer, ela fala até demais – no caso, evoca alguns pensamentos amplos sobre a existência, faz perguntas banais (“Você é canhoto?”), diz que possui uma força maligna dentro de si.
Intui-se que algo sério está prestes a acontecer, a qualquer momento. O incômodo é acentuado pelo constante embate entre a natureza e o artifício: por um lado, existe a floresta, os planos compostos quase por acaso, a luz natural e os ruídos do vento; por outro lado, ela profere frases claramente literárias, ensaiadas, algo cuja dificuldade é acentuada pelos longos planos-sequência. Existe uma sofisticação disfarçada de simplicidade, ou simplicidade disfarçada de sofisticação, neste projeto de Júlio Bressane.
O ritmo depende diretamente da energia de sua dupla de atores, em registros completamente distintos. Marjorie Estiano, mais próxima de uma atuação clássica, parece ter composto em detalhes a personalidade desta jovem anônima, preenchendo mesmo os silêncios e vazios com grande profundidade dramática. Ela também confere naturalidade ao monólogo filosófico do roteiro. Já Gabriel Leone, condenado ao silêncio, manifesta alguns sobressaltos, como se quisesse pronunciar alguma palavra, mas é difícil discernir seus sentimentos diante dos conflitos em cena. Ele é um corpo em movimento, quase animalesco, carregado por intenções e desejos alheios aos olhos do espectador.
Rumo à segunda metade, Garoto começa a esboçar uma história, uma linearidade – ou talvez seja melhor dizer uma circularidade, já que a deambulação inicial do casal se repete no fim, após a execução de um crime. Bressane enfim compõe cenas criativas, instigantes em termos estéticos (a noite no sertão, os sons em off durante o sexo, o exagero nos ruídos do vento e do mar) e promissoras como motor narrativo. Este também é o momento em que as referências cinematográficas se multiplicam em tela, desde menções a O Joelho de Claire, de Eric Rohmer, à exploração do imaginário do sertão, associado à desolação desde o Cinema Novo.
Pode ser que o projeto se torne mais acessível rumo ao final, ou talvez Bressane apenas retome seus símbolos desconexos de modo a carregá-los de sentido na conclusão. De qualquer modo, a impressão de experimentação vã desaparece, a narrativa ganha fôlego e beleza. Que alívio, diante de tantos silêncios, ouvir a primeira e única canção da trilha sonora! Enquanto isso, o cineasta mantém sua paixão pela metalinguagem, desde as cenas iniciais, quando as instruções do diretor são mantidas na banda sonora, às sombras da equipe projetadas no chão, lembrando o peso do autor sobre a construção das imagens.
Filme visto na 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2016.