Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Halloween

Eu vos saúdo, Michael Myers

por João Vítor Figueira

John Carpenter, figura fundamental do cinema de gênero que ajudou a consolidar a febre slasher, já declarou que Halloween - A Noite do Terror (1978) não precisava de nenhuma sequência e que qualquer esforço para tentar explicar as intenções e a personalidade do psicopata Michael Myers é uma afronta ao espírito do filme original. É curioso e paradoxal que o lançamento de Halloween (2018) — nada mais, nada menos que o décimo filme da franquia — vá parcialmente ao encontro da fala de Carpenter. Esta refilmagem ignora todas as demais sequências e se conecta narrativamente apenas aos eventos do filme original. Além das óbvias pretensões comerciais de capitalizar o vasto lastro cultural da cinessérie, há neste longa-metragem a intenção de restaurar a respeitabilidade da franquia com seriedade e um certo nível  ousadia e reverência ao filme original.

O resultado não desaponta, embora não seja possível colocar o filme nos mesmos termos das diretrizes independentes, corajosas e cheias de personalidade que Carpenter mostrou há 40 anos com o primeir Halloween. Naquele contexto, o cineasta conseguiu fazer um filme icônico sobre uma carnificina com relativamente pouco sangue e poucas mortes, mas com um intenso impacto emocional graças à criação de uma atmosfera opressiva e tensa (com ajuda de uma excelente trilha sonora assinada por ele mesmo). Levar quase uma hora para mostrar um assassinato em um filme de terror parece inconcebível para os padrões de hoje em dia, na era da urgência das redes sociais e da gratificação rápida e imediata. O novo Halloween joga de acordo com as regras do cinema comercial moderno e, por isso, é claramente menos audaz do que o original. Ainda assim, trata-se de uma confessa homenagem, repleta de divertidas referências ao clássico que permeia o inconsciente coletivo dos fãs de filmes de terror, um filme que evoca o trabalho de décadas antes de maneira inteligente.

É interessante que duas das primeiras vítimas do psicopata Michael Myers, também chamado de A Forma (The Shape, no original) sejam figuras que tentavam entender o vetor que direciona as ações maléficas do misantropo vilão, que começa o filme preso em um hospital psiquiátrico. A coisa mais importante sobre este antagonista está no que ele representa: o mal em estado bruto e descontrolado. A máscara o despersonaliza totalmente. Assim ele já não é mais um sujeito, mas a materialização de medos dos mais intensos. O novo Halloween, dirigido por David Gordon Green (Joe), parece vacilante em alguns momentos por se enveredar por uma investigação totalmente irrelevante sobre a natureza de Michael Myers. O mais importante aqui é o que o personagem representa em termos psicossociais para as ansiedades que irrompem a paz de um pacato bairro de classe média de Haddonfield, Illinois. Myers é a representação de um medo. Uma figura que ameaça os conceitos de família e propriedade privada, sustentáculos do edifício moral americano.

O novo Halloween enfatiza os efeitos desse medo na vida de Laurie Strode, que quatro décadas depois de ter sobrevivido aos “Babysitter Murders” é uma pessoa totalmente refém do trauma. Isolada em uma casa repleta de equipamentos de segurança pessoal, a protagonista se torna uma verdadeira sobrevivencialista que negligenciou o conforto de sua própria vida para estar sempre alerta temendo a iminência do mal. O transtorno de estresse pós-traumático rendeu à protagonista dois casamentos fracassados, um vício em álcool, uma vida solitária e a distância de sua única filha, Karen (Judy Greer), que não suporta as neuroses da mãe. Karen, por sua vez, é mãe de Allyson (Andi Matichak), uma adolescente em fase de descobertas, ou seja, uma vítima prototípica de Michael Myers em Halloween - A Noite do Terror.

A atuação de Jamie Lee Curtis, que retorna ao papel de Laurie, é eficiente em encarnar um sisudez badass, uma estoicidade cool com um toque eastwoodiano. A Forma, o medo definidor da vida de Laurie a reencontra, é claro, mas não sem antes o filme dedicar um bom tempo a um novo léxico de mortes causadas por Myers. As representações das mortes são mais sangrentas em 2018 e o número de vezes em que elas aparecem também é maior, mas mesmo atendendo a tais demandas modernas, Green consegue evitar o sadismo desproposital e entregar o nível de violência necessário para passar a tensão pretendida. Isso não quer dizer que o filme não seja gráfico quando necessário — há uma cabeça decapitada que alude às abóboras de Dia das Bruxas —, mas o longa também não usa o gore como muleta.

Desde que o projeto foi anunciado, ficou claro que o aspecto mais importante deste filme seria a dinâmica que estabelecida entre A Forma e Laurie. O que acontece quando a presa rejeita seu lugar na cadeia alimentar? O filme de Green justifica a sua existência por mostrar uma vítima que se empodera, no sentido mais literal do termo, de tomar o domínio de si mesma. De certa forma, é como se este filme, um terror estrelado por uma personagem feminina quase sexagenária cheia de cenas de ação, só pudesse existir mesmo no contestador ano de 2018. Laurie não precisa mais ser salva por ninguém e é capaz de defender a si mesma e duas gerações de mulheres de sua família. A direção de Green alterna o balanço entre presa e predador diversas vezes, como quando faz Laurie passar por situações que Michael Myers viveu no primeiro Halloween e quando é dela o rosto oculto no meio das trevas, à espreita.

A figura do psiquiatra Dr. Ranbir Sartain (Haluk Bilginer) acaba sendo uma distração no filme. O personagem ocupa a lacuna que foi do personagem Samuel Loomis com sua obsessão por compreender Michael Myers. A pulsão do Dr. Sartain aponta para uma direção que o filme nunca abraça completamente, que é a ideia de que a máscara de Michael Myers pode passar de pessoa a pessoa. O filme também tem um problema de ritmo em seu terço inicial, quando os passos de Michael Myers são tão apressados que o vilão parece um personagem de videogame transitando de missão em missão, trocando de roupa e armas no meio do caminho. Além disso, por mais que algumas situações sejam bem construídas pelo roteiro e as citações ao filme original funcionem bem no clima de homenagem que este projeto apresenta, é uma pena que falte inspiração aos diálogos.

(Atenção: o próximo parágrafo contém detalhes sobre o desfecho do filme.)

A cena final de Halloween entrega o aguardado acerto de contas com o passado depois quatro décadas de maneira competente. Mesmo com problemas, o trabalho engrandece a mitologia da franquia consciente de que o legado do primeiro filme não precisa de apêndices. No desfecho, nas chamas do redentivo clímax, Green cria uma sequência de imagens complementares icônicas. Num glorioso contra-plongée, o diretor reavalia a função das personagens femininas em slashers pouco antes de encerrar um filme no qual o trauma de uma vítima é mais importante enquanto temática do que a frieza do algoz. Laurie conseguiu se proteger e manter vivas sua filha e neta. Um corte depois, Michael Myers é filmado em câmera alta como um animal que caiu numa armadilha. Mas a luta realmente termina? Como indica a respiração ofegante abafada pela macabra máscara do psicopata que soa nos créditos finais, é preciso que Laurie esteja sempre atenta e forte.