Toda uma vida silenciada
por Rodrigo TorresTerence Davies é um cineasta fascinado por grandes personagens femininas. Sua curta (e muito relevante) obra cinematográfica é como um compêndio do lugar da mulher na sociedade, pautado em diversos tempos e locais passados, como que traçando uma perspectiva histórica para entender as reminiscências do patriarcado nos dias atuais. Além das Palavras se encaixa perfeitamente em sua trajetória artística, e, mesmo assim, talvez represente o mais ambicioso projeto de sua carreira.
Emily Dickinson é o nome do seu desafio. Uma das maiores poetisas de todos os tempos, a escritora nascida e morta no século 19 também é conhecida como uma das mais reclusas da história. Desse modo, Além das Palavras enfim desvenda o que apenas se supunha a partir de sua obra, articulando toda a história de Dickinson aos conflitos internos que marcariam os enigmas e as singularidades de sua produção literária.
Já na primeira sequência, Emily é retratada como uma garota atrevida e vibrante, desafiando as ordens de sua Madre Superiora e abandonando o seminário. Em vida adulta, seguirá contestando todo tipo de norma de seu tempo — como numa contrapartida à Lily Bart (Gillian Anderson) de A Essência da Paixão, considerado o grande filme do diretor e roteirista. Sua afronta às convenções matrimoniais, aliás, ainda espelham o drama de Hester Collyer (Rachel Weisz) em Amor Profundo, enquanto seus questionamentos constantes sobre o lugar da mulher numa sociedade paternalista ecoam a Chris Guthrie (Agyness Deyn) de A Canção do Pôr do Sol. Emily, porém, não será mais bem-sucedida que as outras protagonistas de Terence Davies, e Além das Palavras irá se concentrar justamente em sua jornada de transformação diante de tamanhas frustrações.
Como o título original A Quiet Passion prenuncia, Emily Dickinson teve sua paixão silenciada. Plenamente consciente de seu talento, a escritora lutou para ser reconhecida em vida, mas teve não mais que dez poemas publicados dentre os quase 1800 escritos, descobertos somente após a sua morte. Terence Davies assevera a injustiça da situação ao mostrar que Dickinson abdicou da felicidade do casamento e abraçou a solidão em nome de sua obra. Então, em vez de torná-la um símbolo de empoderamento pouco crível, o cineasta humaniza a personagem com os reflexos mais triviais para sua vida de renúncia. Emily se sente feia, por exemplo.
Cynthia Nixon conduz bem a transfiguração de uma mulher vivaz, irônica, numa pessoa cada vez mais triste, amarga, insociável, insuportável. E doente, com direito a muitas e longas cenas de convulsão. Nestes momentos, a decisão de Terence Davies é ousada, entre o compreensível e o questionável. Pois seu estilo clássico, combinado com a necessidade de encerrar a protagonista numa casa em tons pastéis durante boa parte de um longa-metragem de 125 minutos, faz da experiência excruciante. A cada novo espasmo da personagem, o filme beira o intolerável.
Além das Palavras é, portanto, um melodrama de forma e conteúdo que emulam proposital e severamente o rigor que sufocou a existência de Emily Dickinson. Adequado, porém não menos desagradável.