Homenagem
por Francisco RussoO diretor Miguel Gomes criou a trilogia As Mil e Uma Noites como uma resposta pessoal à crise econômica vivida por Portugal nos anos de 2013 e 2014. Ao longo de dois episódios, cada um em torno de duas horas de duração, usou o sarcasmo como mola mestra de historietas que atacavam a tudo e a todos: o governo, o FMI, a polícia, o sistema público de transportes, a justiça e por aí vai. Em As Mil e Uma Noites - Volume 3, O Encantado, Gomes surpreende ao ir por outro caminho. Aqui, ele tem por objetivo exaltar o povo português.
Não se trata de contrasenso, já que os filmes anteriores sempre trouxeram personagens empobrecidos ou prejudicados que eram apresentados com um certo carinho, dentro de sua respectiva história – os relatos de “O Banho dos Magníficos”, último episódio de O Inquieto, são ótimos exemplos. Entretanto, devido à esta mudança de rumo, O Encantado talvez seja melhor compreendido dentro da série como um todo do que como filme independente. Afinal de contas, dentre as pouco mais de seis horas da trilogia faz sentido que o diretor reserve um espaço para que a vítima de tal crise, o povo português, seja valorizado. O que não impede que, individualmente, O Encantado seja também o mais raso de toda a série.
Outra mudança importante em relação aos filmes anteriores é que, aqui, Xerazade ganha corpo. É ela a grande condutora deste Volume 3, interpretada com muita competência por Crista Alfaiate. Mesclando a sabedoria necessária à personagem, criadora de tantas histórias para suprir as vontades do rei, Crista oferece ainda o carisma e a sensualidade exigidos pelo papel, de forma que possa se destacar junto aos demais habitantes de Bagdá. É neste primeiro episódio, estrelado por Xerazade, que Miguel Gomes ainda oferece resquícios do sarcasmo e da diversidade de narrativa vistos nos longas anteriores, seja através da imagem do “loiro burro” Paddeman (Carloto Cotta, em caracterização precisa) ou na brincadeira que coloca a imagem de Lisboa de cabeça para baixo, ressaltando o quanto a atualidade, “no outro lado do mundo”, não está nada bem.
Outro ponto que chama a atenção é a importância que a trilha sonora ganha neste derradeiro episódio da trilogia, com direito ao clássico “Samba da Minha Terra”, interpretado pelos Novos Baianos, e uma brincadeira relacionada à Bahia durante a própria história de Xerazade. A música também ganha espaço na divertida cena em que a personagem principal dança ao lado de um homem e seu violão, tudo entremeado por belas paisagens e um mar de forte tom azulado, que realça ainda mais a beleza local.
Após a repentina aparição fisica de Xerazade, a personagem permanece em cena nos episódios seguintes, mas apenas através da leitura de seus contos na tela. É quando inicia o segundo episodio, “O Inebriante Conto dos Tentilhões”, que narra a vida de típicos passarinheiros, pessoas que se dedicam a treinar pássaros para que possam cantar mais e mais. O olhar afetuoso a tamanho esforço é uma espécie de reverência à simplicidade do povo português e à própria natureza local, mas por outro lado faz com que o ritmo do longa-metragem caia bastante. Nem mesmo o último episódio, “Floresta Quente”, e a oportuna pausa para o hino português conseguem reverter o quadro.
Em relação à série como um todo, As Mil e Uma Noites – Volume 3, O Encantado é sem sombra de dúvidas o menos criativo e instigante. Ainda assim, possui momentos que conseguem lembrar os pontos altos dos filmes anteriores, especialmente enquanto Xerazade está em cena. Por mais que seja um tanto quanto morno, trata-se de um desfecho oportuno e até agridoce por olhar o povo não como vítima, mas como pessoas que tentam levar uma vida normal da melhor maneira possível, apesar de todos os problemas que as cercam.
Filme visto na 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em novembro de 2015.