Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
As Mil e Uma Noites - Volume 1, O Inquieto

Filho da crise

por Francisco Russo

O diretor Miguel Gomes gosta de fazer experimentações com a narrativa, como tão bem demonstra no sucesso (no circuito de arte) Tabu. Em seu novo trabalho, ele vai ainda mais longe – em parte, graças às características bem peculiares de As Mil e Uma Noites. Idealizado para ser um filme de 6 horas e 20 minutos – sim, você leu bem -, o longa-metragem foi particionado em três de pouco mais de duas horas cada, por motivos comerciais. Desta forma, não espere um trabalho redondo e completo já em O Inquieto, a primeira parte desta trilogia singular. Ela serve mais para situar o espectador na proposta empregada, com todos os ônus e bônus inerentes a um trabalho tão inusitado.

À primeira vista, trata-se de um filme bem bagunçado. É difícil compreender sua proposta até aproximadamente 30 minutos de projeção, devido à extensa narração em off analisando os estragos causados nos estaleiros portugueses devido à recente crise econômica no país. “Neste momento, não me parece fazer sentido rodar um filme que não trate da difícil situação vivida por eles”, diz o próprio diretor. Tudo começa a desanuviar quando o próprio Miguel Gomes surge em cena, interpretando um cineasta que, durante as filmagens de seu novo trabalho, foge. Perseguido e capturado pelos demais integrantes da produção, ele é aprisionado. Sua única chance de escapar é repetindo a tática de Xerazade no famoso livro “As Mil e Uma Noites”, onde todo dia contava uma nova história envolvente para que seu marido, o rei, a mantivesse viva. E assim de fato começa As Mil e Uma Noites, o filme, com direito a letreiro de apresentação e tudo o mais. É quando Gomes começa também a tirar seus muitos truques da manga.

Filho direto da crise portuguesa, abordada não apenas no extenso preâmbulo mas também como matéria-prima de todas as histórias apresentadas, As Mil e Uma Noites – Parte 1, O Inquieto oferece três episódios pra lá de inspirados: “O Homem de Pau Feito”, “A História do Galo e do Fogo” e “O Banho dos Magníficos”. Como não há necessidade de continuidade, trata-se da chance perfeita para que o diretor exercite seu lado criativo em relação aos vários formatos usados para se contar uma história. Do realismo mágico ao uso de SMS na tela, no melhor estilo internetês, passando ainda por atores e o diretor quebrando a quarta parede e crianças interpretando adultos. Vale tudo neste universo onírico que são os causos contados por Gomes, para a alegria do espectador.

Entretanto, o lado mais saboroso do longa-metragem é seu senso de humor extremamente sarcástico e crítico, em relação às instituições portuguesas. Apontadas como responsáves pela crise instalada, Gomes não faz a menor concessão ao ridicularizá-las já no primeiro episódio exibido – atenção às impagáveis traduções inglês-português (e vice-versa). A crise volta à tona nos demais episódios, mas sob outros viés: o do absurdo – o julgamento do galo é ótimo! - e da tristeza e desilusão causada junto aos trabalhadores. Neste último item, são tocantes os relatos de personagens que, assim como aconteceu com tantas pessoas, ficaram desempregadas de forma inesperada, mesmo com décadas de esforço e dedicação.

Ousado e antenado com a realidade, As Mil e Uma Noites – Parte 1 é um filme instigante graças à sua proposta narrativa sempre mutante, que a todo instante surpreende o espectador. Se apresenta problemas, inerentes a tamanha experimentação, eles são minimizados pela criatividade do que é exibido. Além do mais, é muito melhor errar tentando trazer algo novo do que repetir as velhas fórmulas para produzir filmes cada vez mais pasteurizados. Bastante corajoso ao colocar o dedo na ferida, As Mil e Uma Noites deixa um gostinho de quero mais.

Filme visto na 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2015.