Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Peterloo

Batalhas sangrentas no século 21

por Sarah Lyra

Mike Leigh, cineasta britânico no comando de Peterloo, dedicou mais de 50 anos de carreira a contar histórias sobre a classe trabalhadora. Sua familiaridade com questões sociais, autoridade sobre a mise-en-scène e habilidade para desenvolver personagens realistas já estão mais do que comprovadas. Neste novo trabalho, Leigh exibe mais das características que o consagraram e retrata os acontecimentos que culminaram no Massacre de Peterloo, em 1819, quando a cavalaria britânica encurralou manifestantes pacíficos na praça St. Peter, em Manchester, noroeste da Inglaterra. Para deixar sua mensagem política ainda mais em evidência, Leigh abre mão de explorar os acontecimentos a partir da perspectiva de um único personagem. Não existe um protagonista da maneira que estamos acostumados a ver no cinema. A intenção, aqui, é usar figuras históricas, assim como o papel de representantes sociais que exercem, como condutores da narrativa, sem que haja a necessidade de investigar as complexidades humanas dos indivíduos. A comunicação de Leigh prioriza os interesses coletivos.

O filme inicia com um soldado e um general voltando para casa após a vitória sobre o exército de Napoleão Bonaparte, na Batalha de Waterloo, em junho de 1815. Leigh faz questão de acompanhar o momento preciso da chegada de cada um deles para trabalhar o contraste em suas respectivas recepções. O soldado está claramente desorientado, caminha longas distâncias até finalmente chegar à sua humilde moradia em Manchester e, quando reencontra sua família, chora compulsivamente sem conseguir dizer uma palavra. O general John Byng (Alastair Mackenzie), por sua vez, sem aparentar qualquer tipo de trauma, é recebido pelo lorde Sidmouth (Karl Johnson), responsável pelo Ministério do Interior da Inglaterra. Os dois iniciam uma conversa sobre política e debatem o posto de comando que Byng irá assumir, um cargo de confiança que vem como uma promoção pelo papel desempenhado na guerra.

O contraste entre as duas cenas ilustra o que se tornou o país com o fim das Guerras Napoleônicas. De um lado, o homem pobre, obrigado a lutar em uma batalha que em nada beneficia sua vida, sua classe ou sua família. Do outro, a aristocracia britânica que não enxerga as perdas geradas pelo conflito e apenas se importa com a pompa do título de vencedor. Como se não fosse o bastante, o governo aprova as Corn Laws, leis que previam uma tributação em cima da importação estrangeira de cereais, obrigando a população a consumir os produtos locais. Com a devastação da guerra, o aumento da carestia e a falta de perspectivas de mudanças, a população se revolta e passa a exigir uma reforma da representação parlamentar, em que a ampliação do direito ao voto era a principal pauta.

Com a problemática posta, o filme dá início a uma série de discursos de ambos os lados, com uma oratória que impressiona e engaja as plateias. Aqui, Leigh não tem pressa. Embora abra mão de explorar a vida pessoal desses personagens, o cineasta permite que eles discurssem em prol de suas causas sem edições ou resumos — normalmente, a montagem opta por fazer um recorte na fala de maior impacto, deixando o restante da exposição apenas subentendida ao espectador. Não é o caso em Peterloo, o que, dependendo da disponibilidade do espectador em indulgenciar Leigh, pode se tornar cansativo em algum momento. O longa se torna, portanto, um duelo de discursos.

Note como um dos personagens se refere com encantamento à eloquência do ativista Henry Hunt (Rory Kinnear), ou como Nellie (Maxine Peake), por outro lado, se mostra cética quanto à prática. "Menos falação, mais ação", diz ela, em diversos momentos da trama. Simultaneamente ao aceno para que os homens continuem seus discursos, Leigh também trabalha o contraste entre eles. De um lado, há uma ostentação dos aristocratas ao buscarem palavras precisas e elegantes. Do outro, o povo, tão (ou até mais) persuasivo quanto, com uma energia capaz de dominar o ambiente. Uma disparidade similar pode ser vista na cena de preparação para o comício, onde a cavalaria é vista em trajes brilhantes e ostensivos, enquanto o povo de Manchester carrega bandeiras desbotadas e, no caso de Joseph (David Moorst), um velho uniforme de soldado.

Com o ato final vem a catarse. A "ação" suplicada por Nellie anteriormente chega com a absoluta brutalidade protagonizada pela cavalaria inglesa. Leigh evita glamorizar a batalha e, para isso, abre mão de efeitos sonoros sofisticados nos movimentos de luta com espadas e baionetas. As imagens cruelmente realistas falam por si só e o longa demonstra uma impressionante capacidade de ecoar as motivações e práticas políticas atuais em uma história do século 19.

É na crescente tensão criada pela alternância de falas, no cuidado estético, mérito da parceria de longa data com Dick Pope — perceba como as cabeças que ocupam o parlamento e outros ambientes aristocratas se alinham de forma a sugerir texturas e padrões, potencializados por uma iluminação lateralizada dos cômodos, dando profundidade aos objetos em cena — e nos contrastes sociais, principalmente, que percebemos a presença de Leigh em Peterloo.