Pobreza e otimismo
por Bruno CarmeloAs primeiras imagens do documentário anunciam uma abordagem sociológica: várias mulheres são vistas fazendo o cadastro para o programa governamental Bolsa Família. Elas compartilham com as funcionárias suas rendas mensais, o número de pessoas habitando na mesma casa, a quantidade de crianças estudando. No início, este parece um complemento imagético à pesquisa universitária “Vozes do Bolsa Família – Autonomia, Dinheiro e Cidadania”, de Walquiria Domingues Leão Rego e Alessandro Pinzani, que serviu de base para a pesquisa do filme.
No entanto, Aqui Deste Lugar logo abandona a pretensão científica, concentrando-se no dia a dia de três famílias, no Ceará, Rio Grande do Sul e São Paulo. Para um programa tão conhecido pelo impacto no Nordeste, é interessante que os diretores Sérgio Machado e Fernando Coimbra confiram igual importância às regiões Sul e Sudeste. A câmera passa a observar a rotina das mães de família, no trabalho, em casa com os filhos, ouvindo música juntos etc. Enquanto isso, um narrador em off (de tom bastante convencional, típico dos apresentadores de telerreportagens) explica onde cada mulher mora, o quanto recebe do governo, qual é o nível de pobreza de sua cidade.
Os cineastas possuem um bom olhar para os momentos especiais do cotidiano, algo fundamental em documentários que retratam situações banais. Cenas como a do garotinho tentando apanhar um pássaro embaixo do armário ou a mãe dançando a música das Empreguetes com a filha pequena são construídas com boa noção de ritmo e belos enquadramentos. Os diretores privilegiam a sensação de naturalidade, deixando as vozes se sobreporem aos ruídos, tornando-se às vezes pouco claras, e revelando as sombras do equipamento técnico dentro das humildes casas das três famílias. Apesar do realismo, os diretores nunca se escondem por trás de uma suposta objetividade, fazendo questão de reafirmar a sua interferência no local.
Os três capítulos, no entanto, possuem forças desiguais. A jovem Natália Coresma Mota, com seu sonho de se tornar cantora no Ceará, rouba a narrativa quando aparece em cena. Sua personalidade forte e rosto expressivo funcionam como um trunfo amargo para o filme: embora a garota possua uma presença marcante na tela, ela monopoliza as atenções, transformando a história do núcleo cearense em sua história pessoal. A família paulista também traz notáveis momentos cotidianos, já o núcleo gaúcho não desperta o mesmo interesse dos demais.
A escolha por se focar nas personagens femininas se justifica não apenas por uma postura política, mas também pela estrutura do Bolsa Família, que é entregue apenas às mulheres. Entretanto, é interessante notar que Aqui Deste Lugar foge da postura partidária, evitando citar o PT, Lula, Dilma ou outros responsáveis pela instituição do programa de distribuição de renda. Nenhuma melhoria nas vidas das famílias é associada diretamente ao programa do governo, ou seja, evita-se a relação de causa e consequência. As mulheres não citam transformações pontuais em suas vidas, algo que cabe ao público imaginar – por exemplo, talvez a presença de telefones celulares e Internet nas casas pobres represente um desenvolvimento possibilitado pela saída da pobreza extrema.
É mais do que compreensível que o documentário não queira se tornar um panfleto de tal programa ou tal partido. No entanto, Aqui Deste Lugar perde sua força ao fugir de implicações políticas essenciais à discussão. Seria importante conhecer alguma transformação específica na vida dessas mulheres, suas relações com os maridos (pouco presentes nas imagens), seu histórico profissional e escolar, suas aspirações para o futuro e mesmo sonhos de consumo. Machado e Coimbra preferem uma abordagem leve, otimista, privilegiando pequenas brincadeiras em família, piadas, anedotas entre mães e filhas.
Fica-se com a impressão de que a vida dessas pessoas melhorou, ou talvez que já esteja muito bem, obrigado, já que as dificuldades aparecem apenas em segundo plano. Este é o revés da abordagem de tendência neutra: a impressão de comodismo, de que os núcleos pobres estão satisfeitos, de que o trabalho já foi feito e o dever do governo foi cumprido. Ora, a batalha apenas começou. O longo desenvolvimento ainda necessário na vida das três famílias (e de milhares de outras, Brasil afora) também mereceria espaço em uma obra de evidente cunho político e representativo.
Filme visto no 19º Cine PE Festival Audiovisual, em maio de 2015.