Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Assim que Abro Meus Olhos

A arte como forma de liberdade

por Bruno Carmelo

Talvez uma década atrás, o retrato da opressão social na Tunísia fosse pouco acessível à maioria dos ocidentais. A história de uma jovem artista como Farah (Baya Medhaffar), ameaçada pelo governo local por suas músicas contra o sistema, seria o retrato de uma cultura longínqua e hermética. Mas em poucos anos, com tantos governos no mundo inteiro adotando regimes opressores com foco na retirada de direitos sociais, Assim Que Abro Meus Olhos ganha a relevância de um filme-denúncia. Na época em que ferramentas de fomento à arte como a Lei Rouanet são equivocadamente comparadas com a corrupção, as músicas pacíficas de Farah se tornam ainda mais urgentes.

A garota não pertence a nenhum partido político. Não participa de protestos, nem grita palavras de ordem - isso porque, embora próxima, ainda não teve início a Revolução de Jasmin, quando muitos jovens de fato tomaram as ruas. Mas os atos libertários de Farah - cantar músicas sobre os pobres da nação, sair com garotos sem estar casada, ignorar a carreira profissional exigida pelos pais - funciona menos como uma revolta adolescente do que como um germe revolucionário, um desconforto em relação à moral e à política. Farah seria um exemplo de pessoa que vive por sua ideologia. De modo romântico e até ingênuo, mas certamente contestador.

A diretora e roteirista Leyla Bouzid filma Farah e os colegas da banda com uma atenção preciosa aos detalhes. Desde a cena inicial - um belo passeio pelos transportes públicos, quando a câmera capta todos os rostos e corpos de anônimos - até as apresentações musicais, a câmera está atenta ao dedo do namorado acariciando de leve a pele da cantora, os cabelos encaracolados brilhando sob os refletores, as caminhadas pelas ruas de madrugada. Bouzid sabe muito bem integrar os personagens ao ambiente, integrar os ruídos locais à fotografia das ruas, criando um registro cru da juventude.

Ao contrário de uma série de obras militantes que apontam desde as primeiras cenas um inimigo contra o qual lutar, Assim Que Abro Meus Olhos percebe a falha no sistema como um todo. O roteiro insiste menos na repressão policial em si do que na paranoia gerada por ela, na autocensura praticada pelas pessoas após anos de controle violento do Estado. Esta é uma crônica da coragem de uma garota em meio à cultura do medo: quando pessoas estão sendo espancadas todas as noites por suas obras, dizer que os “ricos têm dentes de ouro enquanto os pobres estão desdentados” constitui uma afronta notável - às vezes é preciso ter coragem para dizer o óbvio. Por isso, uma cena de desaparecimento pode despertar dois medos opostos: o personagem em questão pode ter fugido para um lugar melhor (sinal de liberdade) ou pode ter sido pego pela polícia (sinal de prisão).

A própria postura estética da cineasta condiz com o discurso de Farah. Quando Bouzid filma corpos de tunisianos em nudez frontal, quando mostra uma mesma mulher beijando dois homens ou quando registra a resistência de uma mulher diante do abuso policial - uma violência de conotação sexual e vingativa - ela também foge às regras do academismo, às pressões da religião e mesmo à plasticidade rebuscada dos grandes filmes de arte. Este projeto fornece uma espécie de estudo da marginalidade pelos olhos dos jovens, um olhar ao mesmo tempo atento aos problemas de hoje e cheio de esperança para o futuro. A cena final, unindo gerações através da música, é de cortar o coração. Uma conclusão que, como o projeto todo, consegue combinar delicadeza e bravura.