Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
O Escaravelho do Diabo

Túnel do tempo

por Francisco Russo

Nem sempre a lembrança que se tem de algo saudoso corresponde à qualidade do mesmo. Truques da memória, que por vezes valoriza mais o prazer existente na situação vivenciada. É o que acontece com O Escaravelho do Diabo, sucesso literário junto ao público infanto-juvenil nos anos 1980 e 90 que, enfim, ganha uma adaptação para o cinema. Após ver o filme e reler o livro, agora sob o olhar adulto, fica a constatação: a nova versão é melhor. O que não significa que seja, necessariamente, boa.

Para início de conversa, é importante compreender as mudanças feitas pelos roteiristas Melanie Dimantas e Ronaldo Santos em relação ao livro escrito por Lúcia Machado de Almeida, em 1956. Se antes Alberto era um jovem adulto, quase formando na faculdade de Medicina, agora ele é uma criança em torno de 13 anos. A opção em rejuvenescer o protagonista tem fins comerciais, já que o longa-metragem busca atrair o mesmo público jovem de antigamente, mas também resolve problemas conceituais em torno do personagem, um notório paquerador. Agora criança, tal característica é eliminada por completo e a história encontra brecha para trabalhar o tema do primeiro amor, que costuma ser bem recebido pelo público em geral.

Outra mudança considerável se refere ao coprotagonista delegado Pimentel (Marcos Caruso, apático). Unidimensional no livro, onde segue o estereótipo do policial competente e dedicado, aqui ele ganha dificuldades de saúde que afetam sua capacidade. Na verdade, a intenção da dupla de roteiristas era criar deficiências que pudessem ser exploradas tanto em Alberto quanto em Pimentel, de forma que não fossem tão heróicos e sempre corretos, como o livro aponta. Há uma tentativa de humanizá-los, tornando-os mais próximos à realidade e, é claro, ao público atual. Também neste sentido, há várias referências às maravilhas modernas da tecnologia, como tablets, conversas online e videogames. Tudo para que o jovem de hoje se sinta perfeitamente ambientado.

Entretanto, por mais que haja esta nítida preocupação em situar a trama do livro para o mundo de hoje, o roteiro entrega também algumas falhas graves de desenvolvimento. Seja com diálogos bruscos ou conclusões precipitadas/sem terem sido bem fundamentadas, há lacunas relevantes na investigação conduzida por Alberto e Pimentel em busca do assassino dos ruivos. Uma delas é a própria descoberta desta conexão, conduzida através de uma simplicidade impressionante (no mal sentido). Outra é o "escaravelho do diabo vai voltar" solta aleatoriamente por Marcos Caruso, de forma até canhestra.

Apesar destes descuidos, que poderiam ter sido evitados caso o roteiro recebesse um maior apuro, é importante ressaltar o esforço e até a ousadia na proposta do longa-metragem. Mais do que investir na aventura juvenil, O Escaravelho do Diabo adota um tom sombrio que surpreende. Seja através da figura do enigmático vilão, intencionalmente apresentado nas sombras durante boa parte do filme, mas especialmente ao não poupar o espectador de cenas mais fortes. Apesar de jamais ser explícito, o filme traz cenas de violência pouco comuns ao gênero, bem conduzidas pelo diretor estreante (no cinema) Carlo Milani.

Outro ponto positivo é a forma como o roteiro reorganiza os ataques do vilão, até mesmo inserindo situações que não estão no livro. A sequência com o jornalista, interpretado com competência por Bruce Gomlevsky, é uma delas. Divertido e atual, traz ao filme agilidade e também um certo alívio cômico necessário, especialmente quando os problemas de Alberto e Pimentel ganham terreno. O mesmo vale para a cantora pop Rubi, representação cinematográfica da atriz de ópera presente no livro. Por outro lado, a exclusão da subtrama da pensão de Mrs. O'Shea retira do filme um peso excessivo decorrente dos personagens e ainda a paixão insossa existente entre Alberto e Verônica - além de alterar radicalmente o desfecho da história, o que também é uma melhoria.

Por mais que seja irregular, especialmente nas ausências mal explicadas de seus dois personagens principais em certos períodos, O Escaravelho do Diabo merece atenção pelo modo como recria uma história consagrada e até mesmo a melhora, retirando os clichês e vícios decorrentes da época em que foi escrito. Ainda assim, fica a incômoda sensação de que esta mesma história, melhor trabalhada, poderia render um filme bem mais envolvente. Destaque para o bom trabalho do jovem Thiago Rosseti, intérprete de Alberto, bem naturalista em cena.