Príncipe-troféu
por Francisco RussoA mola mestra desta coprodução entre Estados Unidos e Canadá é até interessante: se apropriar da imagem do príncipe encantado, sempre tão mal desenvolvido graças à apresentação unidimensional como o grande salvador das princesas em perigo nos contos de fadas. Soma-se a isso a boa sacada de promover (e sutilmente questionar) tal dinâmica ao estabelecer um crossover entre Branca de Neve, Cinderela e Bela Adormecida, que escancara o estereótipo do desfecho do trio. Entretanto, as boas intenções terminam aqui. Por mais que parta de um preceito promissor, Encantado entrega um punhado de absurdos que buscam entreter a partir da submissão da mulher, dentro de uma casta societária previamente definida maquiada de forma que soe em um contexto absolutamente normal - é daí que vem o tom maquiavélico desta supostamente singela animação.
Talvez o exemplo maior de tal proposta disfarçada surja logo em sua primeira canção, "Meu Troféu", de exaltação aos galanteios e beleza do príncipe Felipe Encantado. "Quando chega bem pertinho já me sinto bem", diz um verso. "Uma aliança no dedo e uma coroa para usar", clama outro. A paixão desenfreada pelo regente até tem justificativa, uma maldição aplicada por uma bruxa amargurada por ter sido desprezada pelo rei. Sim, a vilã da história age por não ter tido o amor correspondido, como se este fosse uma exigência de todo e qualquer relacionamento, e como se a vingança fosse a única saída para uma mulher rejeitada - oh céus!
Porém, não é só. Em meio aos suspiros alheios, Encantado tem sua trajetória em busca do amor verdadeiro - boa sacada, reaproveitando o mote dos contos de fadas - ao lado de Leonora Quinonez, uma ladra que se traveste em busca de uma bela recompensa financeira. Na jornada jamais vem a esperada transformação do regente em uma pessoa melhor, mas ainda assim Leonora desenvolve uma paixonite por ele. É a deixa para que ela troque as vestimentas masculinizadas por um belo vestido rosa com um considerável decote, transmitindo aos menores a mensagem implícita de que assim deve agir toda mulher para conquistar o homem amado. Simples assim.
Tamanha sordidez não é o único defeito deste longa-metragem, cuja pobreza técnica fica ainda mais escancarada nas poucas (e frágeis) sequências de ação. No mais, o filme busca seguir a tradicional fórmula Disney ao apresentar uma aventura em ritmo de musical, com canções espalhadas aqui e ali. Larissa Manoela e Leonardo Cidade, as vozes brasileiras dos protagonistas, até entregam um trabalho correto, por mais que certos diálogos sejam constrangedores.
Didático ao extremo, Encantado busca atrair a geração millennium ao retratar suas princesas com comportamentos típicos da era da internet, com direito a biquinho para selfies, coraçãozinho com as mãos, soquinho como cumprimento e emoji no café da manhã. Tal postura até busca o riso fácil, mas acaba escancarando ainda mais o anacronismo da modernidade que vende em relação aos ideais conservadores entranhados na narrativa.