Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
O Incêndio

Dólares de sangue feminino

por Taiani Mendes

Um homem, uma mulher e muito dinheiro. O Incêndio, drama argentino disponível no Brasil em VOD, é daqueles filmes que não facilitam a posição do espectador e não entrega de cara a que veio. E isso não é um comentário qualitativo. Pela primeira vez assinando um longa sozinho, o diretor Juan Schnitman cola sua câmera em Lucía (Pilar Gamboa) e Marcelo (Juan Barberini) e deixa que as circunstâncias pouco a pouco explicitem o que se passa. No começo sequer sabemos que são esses os nomes dos protagonistas. Entendemos apenas que há uma mudança em curso, uma coleta de dinheiro e algo estranho naquele casal que vai da graça à briga em milissegundos, se agride, se provoca, se beija e não se comunica nada bem. Informações adicionais não são oferecidas de bandeja e quando vêm são como uma avalanche. Acachapado pela montanha de informação – e violência – o espectador fica quando Lucia finalmente se abre numa consulta médica. A partir daí, o que parecia uma mera crise de trintões diante de um grande salto – comprar um imóvel em conjunto é um enorme compromisso – ganha tintas completamente diferentes.

O Incêndio retrata o relacionamento tóxico de tal maneira que o público fica tão sufocado quanto a personagem principal, silenciada e presa em amarras invisíveis a um homem extremamente abusivo. O agressor, no entanto, está distante daquele clichê do macho alfa que chega em casa bêbado e bate na companheira. Está mais para um “belo perdedor”, nome de sua antiga banda. A dinâmica agressiva dos dois pode até passar num primeiro momento como ok no contexto, porém com o avançar dos minutos fica claro que o que ocorre ali, dentro de quatro paredes ou não, é terrível e Marcelo tem um sério problema de (des)controle de raiva. A representação inclusive pode ser bastante útil para muitas pessoas que se encontram em situação semelhante e ainda não se deram conta da nocividade. Não importa se o outro pede desculpas imediatamente depois, se chora, se diz coisas lindas, se é engraçado, se te defende, se odeia, mas também ama. Não deve ser assim e ponto final.

Schnitman acompanha de perto seus protagonistas, quase sempre confinados (faz sentido), e todos os planos têm aquela suave instabilidade que não chega a incomodar, mas potencializa os conflitos, além de dar ao público a sensação de estar dentro das cenas, imobilizado como “vela” do problemático par. Tal sensação tem seu ápice numa sequência muito bem executada de hate sex, uma das melhores já apresentadas no cinema, em que a disputa pelo controle beira a tragédia.

Lucía, numa competente interpretação de Gamboa, em certa parte da trama é descrita como aquela que “não sorri por qualquer coisa”. Como ter alegria sendo oprimida diariamente por homens em casa e no trabalho? Como superar a paralisia do medo? O filme não responde. São “apenas” intensas 24 horas. O Incêndio fere como poucos longas argentinos recentes e termina de forma tão brilhante quanto dura, deixando marcas.