Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Quase Memória

Fluxo de ideias

por Bruno Carmelo

A premissa de Quase Memória remete ao teatro do absurdo: Carlos (Charles Fricks) encontra outro homem muito parecido consigo, dentro de sua casa. Logo, constata que o desconhecido (interpretado por Tony Ramos) não é ninguém mesmo do que ele próprio, décadas mais tarde. Juntos, Carlos jovem e Carlos idoso relembram o passado, de modo caótico. O principal foco dessas evocações é a figura do pai (João Miguel).

Partindo do livro de Carlos Heitor Cony, Ruy Guerra cria uma obra simbólica, distante de qualquer noção de realismo. Passando pelo realismo fantástico e pela fantasia pura, pela estética do teatro e do circo, o cineasta interpreta a memória como um elemento muito mais afetivo do que fatual. Pouco importa como o pai realmente era; importa apenas a sensação que ele provoca nos protagonistas ao se lembrarem dele.

Assim, o dispositivo estético representa uma das qualidades do filme. Ao invés de retratar o passado em preto e branco, ou em tons e sépia, como muitas produções que enxergam a História de modo solene, o drama apresenta um passado multicolorido, artificialmente iluminado por filtros, enquanto os enquadramentos movem-se de maneira mecânica, em planos angulados. A juventude de Carlos é vista efetivamente por um prisma infantil, desconexo, como nos espelhos dos parques de diversões, que distorcem a forma e a percepção.

Em contraposição às lembranças festivas, o tempo presente dos dois Carlos é austero, solitário. Tem-se um único cenário, um verdadeiro palco teatral, sem acesso ao mundo exterior. A vida adulta torna-se uma espécie de prisão escura, desprovida de prazeres ou estímulos. Na falta de interação com o mundo, os personagens pensam sobre si próprios: este é o momento em que o roteiro fornece suas melhores reflexões sobre a velhice, o esquecimento, as promessas não cumpridas e a decepção com a própria vida. O passado torna-se fetiche, o presente é desilusão.

O elenco de Quase Memória possui uma tarefa árdua, por atuarem em papéis muito distantes da realidade. No mundo imaginário da lembrança afetiva, João Miguel transforma-se no guignol, o homem cheio de sorrisos e abraços, já Mariana Ximenes, como sua esposa, pouco pode fazer além de expressar uma angústia ausente. Nas duas versões de Carlos, Tony Ramos se sai muito bem com a intensidade do texto filosófico, mas Charles Fricks nunca consegue acompanhá-lo nas trocas agressivas de ideias e palavras. Fica a impressão (voluntária?) de que o protagonista tornou-se mais astuto e inteligente com o passar do tempo.

Justamente, por se tratar de tempo, Ruy Guerra fornece um tratamento especial à montagem e ao ritmo. Neste caso, mais uma vez, o passado parece mais convidativo, com seus cortes velozes, seu ritmo frenético. O presente, modorrento, adquire o ritmo lânguido da espera pela morte. Enquanto isso, um grande sapo no pântano (voz do próprio Ruy Guerra) faz o narrador desta história, abrindo e fechando a trama como quem compartilha uma historinha infantil. Os prazeres do viver e as tristezas do esquecer são transformados em um conto, ou uma irônica fábula amoral.

Filme visto no Festival do Rio, em outubro de 2015.