Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Mistério na Costa Chanel

Predadores e caças

por Francisco Russo

É possível dizer que este seja um filme fora da curva na carreira de Bruno Dumont. Conhecido pelo seu cinema seco e sem concessões, como em Camille Claudel, 1915 e O Pecado de Hadewijch, aqui o diretor resolve fazer rir. Não criando uma comédia escrachada - apesar de, em alguns momentos, flertar com ela -, mas construindo um ambiente bastante satírico envolvendo classes sociais em uma pequena cidade francesa, no início do século XX. É ele, no fim das contas, o grande atrativo de Ma Loute, seu novo filme.

Em parceria com os atores, Dumont criou personagens saborosos. Afetados e histriônicos, os Van Peteghem são também esnobes e preconceituosos, refletindo o estereótipo básico de uma aristocracia típica. Só que, de forma a ressaltar que vivem em um mundo próprio deslocado da realidade, todo o elenco criou uma série de maneirismos e tiques que, na tela, soam intencionalmente artificiais. É como se cada adulto fosse um personagem de desenho animado antigo, com gestos exagerados que o tornam caricaturais.

Diante deste proposta, os atores tiveram espaço para exagerar à vontade. É o caso de Juliette Binoche, com suas gargalhadas falsas que ecoam por onde estiver, e Fabrice Luchini, que realiza um difícil trabalho corporal para trazer o corcunda André à vida. Tamanha falsidade surge também nos efeitos sonoros, usados de forma a ressaltar as apertadas roupas de couro, e no fato de que os Van Peteghem tropeçam a todo instante, pelo simples fato de não conseguirem se adequar à realidade que os cerca, por mais que jamais admitam isto. É como se o mundo ao redor lhes enviasse uma mensagem constante, para que saiam das nuvens e ponham os pés no chão.

Do outro lado da vila, há os pescadores. Sérios e simples, eles se aproveitam da futilidade dos ricos para transportá-los com frequência de um lado para o outro de um lago. São objetos de admiração pelos ricos, mas à distância, em um misto de estudo etnográfico e desprezo. Já os pobres os vêem como uma oportunidade a ser aproveitada, seja pelo lado financeiro ou sob outros interesses.

A partir de personagens tão interessantes, tanto visualmente quanto pelo comportamento adotado, Bruno Dumont desenvolve um cenário riquíssimo que, de certa forma, reflete a sociedade moderna. Estão lá, de forma muito nítida, as classes sociais e suas respectivas peculiaridades, com limites estipulados e ousadias de lado a lado para rompê-los. Está também o questionamento de gênero, tão comum nos dias atuais, refletido no comportamento da jovem Billie (Raph), uma garota que gosta de se vestir como homem e se apaixona por um deles. Há também o humor corporal, explorado especialmente no atrapalhado policial que investiga alguns desaparecimentos (e provoca boas risadas). E há ainda uma boa dose de humor negro, de forma a alimentar - com duplo sentido! - o inevitável confronto entre ricos e pobres.

Só que, em meio a tantas possibilidades, Bruno Dumont se atém a insistir no lado pitoresco de seus personagens. É como se, hipnotizado pela criação, optasse por deixar de lado a história a ser desenvolvida, acreditando que sua simples existência seja suficiente para sustentar o interesse. Com isso, várias subtramas insinuadas são mal resolvidas e outras tantas são simplesmente largadas, causando frustração. Fora a questão do realismo mágico, que surge de rompante sem sustentação.

Por mais que entregue uma segunda metade problemática, ainda assim é preciso ressaltar o poder de criação ofertado por Ma Loute. Seja no conflito entre ricos e pobres ou na concepção de cada personagem, há uma riqueza de detalhes que merece atenção. Fora o fato de que Dumont deixou sua zona de conforto habitual para tentar algo completamente diferente, o que merece aplausos.

Filme visto no 69º Festival de Cannes, em maio de 2016.