A felicidade bate à porta
por Bruno CarmeloDiz a sabedoria popular que não faz amigos quem fica trancado em casa, sozinho. É preciso sair, viver novas experiências, se arriscar. Exceto por Ove (Rolf Lassgard), um sujeito ranzinza que passa os seus dias xingando os vizinhos, maltratando os colegas de trabalho, importunando os amigos de antigamente. Ele odeia a tudo e todos. Mesmo assim, as pessoas ao redor são sistematicamente gentis com ele: o novo casal que mora em frente sorri diante dos gritos de Ove, um adolescente o convida para almoçar depois de ser xingado por ele, uma vizinha idosa elogia seus conhecimentos depois de ser enxotada da porta de sua casa.
Um Homem Chamado Ove revela-se como uma fábula. Nenhum personagem é realista: ou temos seres execráveis, ou amigáveis em excesso, ou são heróis de grande coração (a vizinha grávida), ou vilões dignos de desenhos infantis (o funcionário da prefeitura). A intenção é mostrar que o protagonista, um homem originalmente correto e amigável, se tornou um sujeito amargo após uma série de tragédias em sua vida. Mas qualquer um, mesmo Ove, pode voltar a ser feliz. Ponto final. Poderíamos parar o texto por aqui, dando por concluído o simplório ensinamento moral. Porém, o mais curioso é perceber de que modo o diretor Hannes Holm constrói esta lição de vida.
A narrativa é movida essencialmente por nascimentos e mortes. O protagonista, descontente com a vida, tenta se matar meia dúzia de vezes, quando é interrompido por alguma intervenção da providência divina: um vizinho bate à porta, um barulho lá fora o distrai. Ove tem a morte em seu passado e seu futuro: enquanto concebe novos métodos engenhosos de suicídio, flashbacks coloridos listam as perdas dolorosas vividas por esse homem para deixá-lo em tal estado de descontentamento. Entra em cena uma sucessão perversa de mortes de pessoas queridas, todas testemunhadas pelo personagem principal. Enquanto isso, três mulheres grávidas relembram o ciclo da vida.
A estrutura torna-se ainda mais perversa pela estética adotada, típica de um comercial de seguro de vida - o que talvez represente o filme como um todo. O micro vilarejo onde se passa a maior parte da história é filmado com os tons constantemente ensolarados de um cenário artificial, enquanto a música (fanfarra nas horas engraçadas, as cordas de uma orquestra nas horas tristes) se encarrega de duplicar o sentido de cada cena. Este feel good movie sobre a morte como possibilidade de redenção - o discurso religioso nunca está distante - poderia se tornar interessante caso a direção percebesse o caráter absurdo e mesmo grotesco de sua premissa, algo que o Tim Burton de antigamente faria muito bem. No entanto, Holm acredita na profundidade de seu discurso pseudo revelador.
Existem qualidades, é claro, e dignas de nota. A proposta de uma Suécia multirracial, aberta aos imigrantes e às novas culturas, merece destaque. Lassgard está ótimo no papel de Ove, conseguindo tornar os momentos mais desesperadores um tanto burlescos. A produção também é competente, embora opte pelo otimismo excessivo na estética e no discurso. Talvez Um Homem Chamado Ove pudesse ser apreciado como melodrama de vocação televisiva, um guilty pleasure focado no público familiar. Mas aparecem então a pavorosa cena do incêndio e a risível cena da rampa para deficientes para nos lembrar que clichês e licenças poéticas também têm limites.