O filme-evento
por Bruno CarmeloAlerta: O texto a seguir busca não revelar nenhum spoiler do filme. Mesmo assim, caso você não queira descobrir absolutamente nada sobre a trama, incluindo informações divulgadas pelos trailers e pela sinopse oficial, é recomendável ler o texto depois de ter assistido à produção da Marvel.
Mais do que qualquer filme precedente do Universo Cinematográfico Marvel, Vingadores: Ultimato serve a pensar a maneira como as fantasias de super-heróis representam o nosso medo de lidar com a morte. Os personagens possuem poderes excepcionais, que a princípio garantiriam uma chance de sobrevivência superior àquela dos seres humanos comuns. No entanto, os protagonistas são ameaçados o tempo inteiro, enfrentando adversários igualmente poderosos. No universo dos quadrinhos, heróis morrem a todo instante – e também ressuscitam com frequência, em virtude de magias e novos desenvolvimentos tecnológicos.
Estas produções lidam ao mesmo tempo com a vida eterna – Thor (Chris Hemsworth) tem mais de 1000 anos, por exemplo – e a necessidade de estar pronto para a morte a qualquer instante. O superpoder dos personagens funciona como bênção e maldição: é o que os torna atraentes, ídolos, mas também alvos privilegiados. Alguns pesquisadores em psicologia do cinema dizem que as imagens fornecem ao espectador uma experiência simbólica de lidar com elementos que ele não poderia enfrentar na vida real – não temos o direito de matar alguém, por exemplo, mas podemos assistir a um filme de terror e “simular” a experiência de matar alguém. O mesmo valeria para a gangorra de vidas e mortes, de heroísmo e martírio exigidos pelas produções baseadas nas HQs.
O último filme da saga Vingadores começa e termina sob o signo da morte. Por retomar a trama vinte e dois dias após o ataque de Thanos (Josh Brolin), que exterminou a metade da população mundial, os protagonistas se encontram de luto, sem perspectivas de futuro. Eles ainda combatem, porém não conseguem aceitar a perda de seus colegas. Rumo ao final desta longa aventura, outras vidas serão sacrificadas em nome de um bem maior, como se esperaria de um enfrentamento com o temido antagonista. Por estarmos dentro de uma trama com personagens que manipulam o tempo, navegam em reinos quânticos e detêm joias do infinito previstas para alterar realidades, espera-se que pessoas possam alterar o passado. De certa maneira, dribla-se a mortalidade - como diria um personagem, “nada é definitivo”.
Ao concluir uma franquia com dezenas de filmes, a Marvel possuía uma responsabilidade imensa. Primeiro, por se tratar de um projeto caríssimo, que certamente superou os US$ 250 milhões investidos nos títulos anteriores. Segundo, pela necessidade de fornecer o desfecho de alguns personagens, que existem em planetas e épocas distintas, acenando para o futuro de cada um, atando os amores desfeitos e unindo familiares distantes. Terceiro, porque a relação com os fãs é contraditória: por um lado, eles são os mais fáceis de agradar, por ficarem em êxtase diante da presença de seus heróis favoritos, por outro lado, são bastante exigentes no que diz respeito à fidelidade aos quadrinhos, à importância de cada personagem, aos poderes específicos. Existe uma mitologia a ser desenvolvida e respeitada, e desenvolvê-la constitui uma iniciativa ao mesmo tempo arriscada e prazerosa. Quarto, porque uma produção deste porte precisa se comunicar tanto com os geeks fervorosos quanto com aqueles que jamais assistiram a um filme da Marvel. Ela precisa cativar os adolescentes e os adultos, além de funcionar como ação, humor, drama, fantasia.
As exigências são enormes, o que limita a possibilidade de tomar riscos. Os diretores Joe Russo e Anthony Russo, além do produtor Kevin Feige, têm ampla noção das exigências, fornecendo um produto muito bem sucedido em suas distintas necessidades. Não há estripulias narrativas ou grandes transformações na estética consagrada até então. Mesmo assim, o filme está saturado de humor apropriado para menores de idade, na vertente mais juvenil de Guardiões da Galáxia (inclusive exagerando no que diz respeito ao Thor), além de trazer batalhas bem coreografadas e frenéticas como nos Vingadores anteriores, ou em Capitão América: Guerra Civil, e momentos de tragédia e melodrama como convém a um filme de despedidas, além de dezenas de referências às produções anteriores.
Mais do que trazer easter eggs e pontuar a narrativa com fan service, o filme constitui um fan service em si. Ele é concebido de modo a garantir que os produtores não se esqueceram de nenhum personagem, não abandonaram nenhum filme, nem deixaram pontas soltas na Fase 3 do MCU. Num contorcionismo notável de montagem, cada herói tem direito ao seu momento para brilhar, e toda cena permite um equilíbrio de tom: piadas aparecem no meio de um funeral, revelações tristes ocorrem em plena batalha, um momento de ação irrompe durante uma tirada cômica. Embora Ultimato não surpreenda pela proposta de cinema, trazendo música nos lugares esperados e reservando o grande confronto para o clímax, ele surpreende pelo refinamento do produto que oferece.
O resultado é extremamente competente dentro das regras que a Marvel criou para si mesma, trazendo imagens polidas, atuações marcantes (de Robert Downey Jr., em especial), efeitos visuais e sonoros impecáveis. Este é o produto de uma indústria que precisa ao mesmo tempo honrar fórmulas de sucesso e trazer ao espectador algo que pareça novo, genuíno. Vingadores: Ultimato honra o patriotismo americano, mas também se abre à noção de fraternidade internacional; coloca os heróis masculinos no centro da trama, mas inclui um pequeno aceno à liderança feminina; fomenta histórias de amor entre heróis e suas amadas, mas cita com naturalidade um romance gay; privilegia os personagens brancos, porém não esquece de destacar a importância de Don Cheadle, Anthony Mackie e o elenco de Pantera Negra.
Por fim, o resultado deve ser menos lembrado por suas reviravoltas e suas lutas – que, vistas separadamente, não diferem tanto de cenas equivalentes dos filmes anteriores – do que pelo culto criado em torno das marcas Vingadores e Marvel. Ultimato coleciona recordes de bilheteria antes mesmo de estrear, assim como A Era de Ultron (2015) e Os Vingadores (2012) colecionaram recordes em seus anos de estreia. A mídia está saturada de notícias sobre sessões esgotadas, críticas excepcionalmente positivas, gadgets inéditos e produtos derivados das imagens dos heróis. Especulações de todos os tipos são lançadas aqui e acolá sobre possíveis acontecimentos da trama, enquanto pequenos comerciais de televisão divulgados na Internet atraem milhões de curiosos.
A Disney conseguiu criar um fenômeno cultural, uma produção “inevitável”, como Thanos gosta de descrever a si mesmo. Com certa regularidade, a empresa apresenta filmes “incontornáveis”, experiências que precisam ser vistas dentro do cinema, assim que estiverem disponíveis – algo importante para o faturamento recorde -, porque depois todos os colegas já terão visto, os spoilers estragarão o prazer, e qualquer pessoa que ainda não tiver descoberto os rumos dos super-heróis se sentirá ultrapassada. Os estúdios criaram uma moda, um produto de consumo, além de um prazer cinematográfico. Vingadores: Ultimato não é apenas a conclusão de dezenas de filmes, mas também o veículo de sustentação de uma marca poderosa, despertando um senso de necessidade no espectador que raramente ocorre com outros filmes.
Talvez esta seja a grande diferença dos filmes-espetáculo e das produções comuns no cinema: o blockbuster cria a demanda para suprir a oferta, despertando o desejo e sua saciedade, o problema e a solução. Ele traz aquilo que se espera dele – o confronto dos heróis com Thanos, a inclusão de Capitã Marvel (Brie Larson) no confronto, a recuperação das joias do infinito, o retorno de alguns personagens. Já as produções, digamos, “alternativas” ou “de arte” propõem algo que não se espera, até porque nunca se prometeu nada. Elas constituem universos em si, capazes de desestabilizar, provocar choques no sentido e na compreensão. O blockbuster é feito para reconfortar, já o filme alternativo busca perturbar.
Enquanto proposta de reconforto, nada mais eficaz do que este mastodonte cinematográfico com todos os personagens, cenas, efeitos e reviravoltas que se esperaria dele. “Você vai rir e chorar”, diziam os reclames dos espetáculos de antigamente, e é exatamente isso que se encontrará aqui. Os Vingadores converteram seu público em “seguidores”. Dentro da sessão de imprensa, que costuma ser menos emotiva do que as exibições ao público, os jovens jornalistas choravam, riam, comemoravam, gritavam “É isso aí!”, “Agora sim!”. No final, um acontecimento inédito: dezenas de críticos corriam para comprar baldes do Thanos e cartazes em miniatura do filme, sacando seus cartões de crédito no instante em que saíam sala e se depararam com os brindes. Estes jornalistas também se transformam em consumidores, colecionadores da marca preciosa da cultura contemporânea. Eles são os verdadeiros enfeitiçados - o encantamento opera do outro lado da tela. Este é o aspecto mais curioso do filme: sua inserção social, seu impacto extra-filme. Ultimato fascina sobretudo enquanto objeto de adoração.