Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Uma Dama de Óculos Escuros com uma Arma no Carro

Os fetiches da secretária

por Bruno Carmelo

Dany (Freya Mavor) trabalha como secretária para o empresário Michel (Benjamin Biolay). Ela tem desejos secretos pelo patrão, mas não pretende viver um relacionamento amoroso, e sim ter relações sexuais com ele. Mais especificamente, os sonhos de Dany envolvem ser violentada pelo homem poderoso de terno e gravata. O fetiche serve para apimentar, ainda que no âmbito da imaginação, a vida monótona da garota sem família, amigos próximos nem passatempos.

Um dia, a moça triste que “nunca viu o mar” (frase repetida em mantra ao longo da história) se vê em posse do carro luxuoso do chefe. Num ato impensado, começa a dirigir rumo ao sul da França, buscando sensações novas e, inevitavelmente, encontros amorosos. É curioso como o drama do diretor Joann Sfar (baseado no livro de Sébastien Japrisot) faz da odisseia de Dany uma viagem de libertação sexual. Em poucos dias, a garota encontra diversos homens, todos interessados em seu corpo, e fantasia em maior ou menor medida com o potencial erótico de cada um deles. Ela chega inclusive a ser atacada por um homem misterioso em um local público. Mas como isso teria sido possível se ninguém viu o agressor? Ela estaria apenas fingindo? Sonhando?

Três quartos de Uma Dama de Óculos Escuros Com uma Arma no Carro – belo título, aliás – se passam entre sonho e realidade, fatos e ilusões que perturbam a protagonista. Algumas pessoas julgam tê-la vista nesta mesma estrada na véspera, mas Dany jamais percorreu aquele caminho antes. Ela teria uma sósia? Ela apagou da memória uma experiência vivida antes? A protagonista passa a se dividir em duas: por um lado, ela é a secretária recatada e inexperiente, mas uma versão despudorada de si mesma anda às soltas pelo país. Não por acaso, o filme explora o recurso das telas divididas e personagens com identidades dúbias.

A câmera de Sfar observa Freya Mavor com inegável desejo, percorrendo cada centímetro do corpo da atriz, filmando em detalhes o rosto se contorcendo de prazer. O cineasta assume o ponto de vista dos homens desejantes, escolha questionável para uma obra que busca investigar a psicologia feminina. O projeto poderia alimentar o importante debate sobre a fetichização do estupro no cinema: assim como Dany deseja ser possuída à força, a executiva Michèle (Isabelle Huppert) de Elle buscava reproduzir o estupro sofrido. Curiosamente, trata-se de dois filmes franceses, ambos dirigidos e roteirizados por homens. Vale lembrar que Dany tem, sim, o direito de se envolver em quantos atos sexuais desejar, algo que poderia ser lido como uma narrativa de emancipação feminina, mas o desejo de submissão aos homens compromete a leitura de libertação pessoal.

Para além da questionável representação feminina, Sfar contamina as suas imagens de uma atmosfera retrô sufocante, para representar os anos 1960 através da overdose de trilha sonora lânguida, cores pastéis e figurinos filmados como preciosidades. O espectador pode ter a impressão de fazer uma longa visita a uma loja de perfumes, algo que talvez condiga com a representação de um devaneio erótico. É uma pena que, na reta final, os subentendidos sejam trocados por uma explicação fria e racional, dissipando qualquer ambiguidade. O público pode ter desenvolvido diversas teorias sobre a dupla personalidade de Dany, mas o filme acha necessário eliminar as leituras erradas e indicar uma única "verdade” na trama toda. Uma Dama de Óculos Escuros Com uma Arma no Carro instiga o espectador quando se aventura por um mundo de sonhos, mas decepciona ao retornar à realidade com um desfecho puramente policial.