Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Agnus Dei

Os limites da fé

por Bruno Carmelo

O Brasil atravessa, neste momento, uma discussão ética fundamental a respeito do estupro. Após 33 homens violentarem uma jovem, grande parte da comunidade cristã se calou, alguns homens machistas preferiram culpar a vítima e, entre as vozes denunciando o ato bárbaro, repetiu-se a ideia de que o estupro não está relacionado ao desejo sexual, e sim à sensação de poder. Esta ideia fica bastante clara diante de um drama como Agnus Dei, no qual dezenas de freiras polonesas são violentadas por soldados inimigos em 1945. A questão, no caso, não diz respeito ao desejo sexual dos homens, nem à vestimenta das religiosas ou ao seu comportamento - impossível encontrar figuras mais “recatadas e do lar” do que elas. Trata-se do estupro como instrumento de dominação, como arma de guerra.

O roteiro efetua um bom trabalho na descrição física e psicológica das consequências destes atos. No aspecto físico, sete freiras engravidam, e outras contraem doenças como a sífilis. Os traumas psicológicos são decorrentes da vergonha e do sentimento de culpa tipicamente católico, potencializado pela agressão. Algumas têm medo de se tocar ou serem tocadas, outras rejeitam a maternidade, outras ainda acreditam que sofrem uma punição merecida. Afinal, Deus não dá um fardo maior do que se pode carregar, certo? A retórica religiosa é contestada diante da violência. Por que o ser todo misericordioso permitiria que suas filhas mais devotas sofressem essa atrocidade? Muitas freiras atravessam, portanto, uma crise de fé.

O contraponto deste discurso é fornecido por Mathilde, enfermeira francesa que socorre em segredo as religiosas grávidas. De origem operária e comunista, ela é ateia, pragmática e libertária em relação ao próprio corpo. Mathilde rejeita o modo de vida das freiras como estas a rejeitam, mas Agnus Dei cria uma discreta e progressiva amizade entre elas. A união das diferenças em nome de um bem comum é retratada com delicadeza, e reforçada pelas atuações convincentes de todo o elenco. Na parte polonesa da equipe, Agata Kulesza faz uma ótima Madre Superiora, capaz de atos drásticos para respeitar sua leitura rígida da Bíblia, enquanto Agata Buzek transborda hesitação nos olhares e gestos da freira Maria. Na metade francesa, o filme toma a atitude interessante de escolher Lou de Laâge, sempre responsável por papéis de mulheres fortes, para viver Mathilde, enquanto Vincent Macaigne, de voz doce e olhar frágil, interpreta a principal figura masculina.

A diretora Anne Fontaine, conhecida por comédias frívolas como A Garota de Mônaco (2008) e Gemma Bovery (2014), adota um tom radicalmente diferente de seus trabalhos anteriores. Agnus Dei é um filme de luzes frias, enquadramentos clássicos e estáticos, ritmo contemplativo. Não há um único floreio estético, nenhum recurso melodramático. A abordagem é certamente humanista, pela compaixão em relação aos personagens e pela possibilidade otimista de aproximação entre eles. Mas o caminho para a concretização deste discurso é lento, quase microscópico, com direito a repetições e dilatações temporais, análogas à vida das freiras.

Apesar das qualidades, o projeto não consegue desenvolver o seu conflito para além da questão da gravidez indesejada. Conhece-se pouco sobre o mundo ao redor do convento, sobre o contexto da guerra, sobre os conflitos entre diferentes religiões, etnias e nações. Do mesmo modo, a trama ignora as dores das freiras que foram estupradas, mas não engravidaram, preferindo focar-se apenas naquelas em fase de gestação. Talvez uma abrangência maior pudesse aumentar a relevância política do filme, ao invés da decisão de acompanhar todos os partos, um por um. Paralelamente, as poucas cenas fora do convento são filmadas de modo pouco interessante: os três momentos no bar são vistos pelo mesmo ângulo, com os personagens sentados na mesma mesa.

Outro aspecto questionável neste filme é a ingerência. Enquanto o ceticismo de Mathilde e o conservadorismo de Maria se confrontam, há espaço para uma bela reflexão. O terço final da narrativa, no entanto, faz prevalecer a visão de Mathilde sobre os princípios das freiras, numa reviravolta pouco verossímil. Agnus Dei transforma-se na história de vítimas “salvas” por uma garota estrangeira, algo que poderia ser criticado como dominação cultural. Mesmo assim, a obra surpreende por demonstrar um lado mais sóbrio e intimista de Anne Fontaine, sem recorrer ao melodrama que poderia tão facilmente se instalar nessa história.