O cinema em crise (de relacionamento)
por Bruno Carmelo“Jean-Claude, o que você acha do suicídio?”. Esta é uma das primeiras falas de Pingo d’Água, indicando que não estamos diante de um projeto comum. O entrevistado em questão é Jean-Claude Bernardet, crítico, escritor e teórico belga, que mora no Brasil desde a adolescência. O filme, de certa maneira, constitui uma homenagem ao potencial criativo e intelectual deste homem, com uma abordagem não menos criativa e intelectual do cineasta Taciano Valério.
Em tela, Bernardet e diversos atores interpretam uma versão de si mesmos, no papel de atores que preparam um filme (o próprio Pingo d’Água) enquanto reclamam da falta de cachês, e depois se amam em conjunto, ensaiam, fazem festas juntos. Esta obra aborda de maneira frontal a dificuldade e a vontade de se fazer cinema, numa espécie de confissão, de performance teatral-cinematográfica. Para além dos rótulos, o filme transforma-se num vertiginoso abismo metalinguístico que borra todas as fronteiras entre ficção e documentário.
Ao longo das cenas desconexas, começa a se desenhar um sutil fio condutor. Todos estes momentos, tanto os mais encenados quanto os mais documentais, são ditados pela ética do afeto. Como uma grande família, os personagens cuidam um do outro, beijam-se bastante, fazem muito sexo, discutem a solidão ou inadequação. Se o diretor Marcelo Pedroso descreveu sua obra Brasil S/A como “um filme de ethos”, esta outra obra do festival de Brasília poderia ser definida como um filme de pathos. A emotividade, a impulsividade e o excesso compõem a generosa economia afetiva do diretor.
Mais do que abordar os afetos, Pingo d’Água também estuda a crise dos mesmos. Sucedem-se instantes com casais (heterossexuais e homossexuais) em dificuldades de relacionamento, a solidão de Jean-Claude Bernardet enquanto espera pelo amigo, a dificuldade de um personagem, portador de deficiência física, que precisa ser auxiliado pelos demais. O amor nunca é um dado estanque nesta obra, e sim uma fonte contínua de conflitos. O cinema, do mesmo modo, é colocado em crise pela metalinguagem, através de personagens que mal se conseguem inserir no mercado do cinema, e vivem em permanente precariedade.
Por fim, este pode ser um filme heterogêneo, difuso demais, mas por trás da impressão de um roteiro despreocupado, existe um sólido desenvolvimento estético e de personagens, amarrados por uma bela montagem e uma precisa fotografia em preto e branco. Raramente o cinema brasileiro apresenta cenas tão estranhamente comoventes quanto o momento em que Jean-Claude Bernardet se despe e se enfia dentro de uma grande mala de viagem, mas antes de fechar o zíper, estende o braço para fora, a fim de receber o carinho do companheiro ao lado.
Filme visto no 47º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro de 2014