Fábulas sem moral
por Bruno CarmeloO letreiro inicial fornece uma explicação curiosa ao espectador: logo após o colapso da União Soviética, o governo do Cazaquistão cortava a energia elétrica das residências todas as noites, para economizar dinheiro. Trata-se de um fato ao mesmo tempo específico demais como contextualização histórica e abrangente demais como porta de entrada para um drama. Mas esta é a metáfora perfeita para uma história que vai das casas à cidade, do individual ao coletivo. O Anjo Ferido articula a história de quatro jovens cazaques, vivendo projetando em suas famílias a dificuldade de lidar com os problemas lá fora.
As narrativas são independentes, mas se cruzam pela proximidade dos temas e dos símbolos. Os quatro garotos revelam-se solitários, introvertidos, tendo pouca ou nenhuma intimidade com os pais. As casas apresentam uma estrutura semelhante, com poucos móveis, um espelho idêntico colado à parede, os mesmos objetos (a cama metálica, os ovos, a mesa de madeira). Um conflito une as tramas: a queda de luz à noite, mergulhando-os na solidão. O filme se desenvolve como variações de uma história única, demonstrando de que maneira o mesmo cenário pode ser usado para finalidades dramáticas variadas.
O jovem diretor Emir Baigazin possui um domínio excepcional do enquadramento e do ritmo. Suas imagens são não apenas belas, mas engenhosas: é formidável ver a complexidade das composições através do uso de reflexos nos espelhos e janelas-dentro-do-quadro. A iluminação é impecável, sem chamar atenção a si mesma: o cineasta busca a beleza de lugares abandonados, das ruínas, sem precisar adornar as cenas com luzes douradas do sol nem trilhas sonoras emocionantes. O excelente diretor de fotografia Yves Cape (Holy Motors, A Humanidade) busca extrair a máxima beleza dos elementos à sua disposição. Assim, apesar de o realismo ser frequentemente associado ao improviso e à mínima intervenção, O Anjo Ferido consegue combinar o controle absoluto e a discrição autoral.
Parte da crítica internacional torceu o nariz a este projeto durante o festival de Berlim por constituir, supostamente, um simples retrato da decadência adolescente. Esta análise soa apressada: as quatro histórias são suspensas no exato instante em que os protagonistas infringem alguma regra, ou testam os limites da legalidade. Não se trata de atos abomináveis, apenas provocações que poderiam, ou não, ter consequências graves. Os silenciosos protagonistas (de olhos expressivos e gestos muito bem dirigidos) alimentam insatisfações devido à situação do país e aos conflitos familiares, que são extravasadas num acerto de contas simbólico com o meio ao redor.
Por esta razão, O Anjo Ferido representa um projeto instigante moralmente e imageticamente. Através dos fragmentos da vida cotidiana, acenando ao realismo fantástico, cria-se um panorama poético do Cazaquistão. As histórias de Zharas, Balapan, Zhaba e Aslan funcionam como contos de fadas contemporâneos: seus significados são múltiplos devido à amplitude das metáforas e analogias, porém servem como ótima representação da época em que se situam.
Filme visto no IV Festival Internacional Lume de Cinema, em março de 2017.