Críticas AdoroCinema
2,0
Fraco
Jogo Perigoso

Os traumas de uma mulher algemada

por Bruno Carmelo

O ponto de partida deste suspense é bastante intrigante: para apimentar um relacionamento, o casal Gerald (Bruce Greenwood) e Jessie (Carla Gugino) viaja a um local isolado. Ele decide algemá-la à cama para uma experiência erótica nova. Mas o marido sofre um ataque cardíaco e morre aos pés da cama. A mulher fica presa, sem ter ninguém para chamar. Este poderia ser o início de um eletrizante suspense de sobrevivência, com a protagonista lutando para fugir. No entanto, este não é o foco do diretor Mike Flanagan.

Para quem espera uma história de clausura como Enterrado Vivo ou Rua Cloverfield 10, o resultado é um drama mais tradicional do que parece. Uma vez imobilizada, Jessie passa a travar uma conversa imaginária com o marido morto e com uma versão mais segura de si mesma, livre e maquiada. A mulher e as duas projeções participam de diálogos longuíssimos sobre confiar em si mesma, ser mais forte em momentos de provação e não se sujeitar aos maus-tratos alheios. Quem diria que o suspense erótico poderia se transformar em autoajuda…

As conversas imaginárias são justificáveis: era necessário encontrar alguma ferramenta de conflito, algo para fazer a personagem se mover e se transformar. Senão, de que maneira a história poderia continuar? Por outro lado, as conversas tornam as ações de Jessie menos interessantes, retirando o senso de perigo: as vozes ditam, calmamente, o que a mulher deveria fazer para permanecer viva: “É preciso beber água”, “Se tentar tirar o punho da algema, você vai quebrar a mão e não vai funcionar”, etc. Por mais que as vozes sejam uma emanação da própria Jessie, elas reforçam a impressão de uma mulher fraca e passiva, mesmo diante do risco de morte.

Aos poucos, Flanagan praticamente esquece as algemas para mergulhar no passado da personagem, com seus traumas familiares. O roteiro encontra uma maneira razoavelmente delicada de abordar a pedofilia, mas o cineasta não tem vocação para sutilezas: ao invés de sugerir o abuso, ele aposta em paisagens surreais e multicoloridas, além de uma cena da garota deitada na cama com os braços abertos, exatamente como Jessie se encontra no tempo presente, para sugerir que ela já estava simbolicamente acorrentada desde criança. Ou seja, em Jogo Perigoso, o problema não é a possibilidade de morrer de fome e sede, presa a uma cama, e sim o retorno do recalcado. Ironicamente, o fato de ficar presa serve como possibilidade de superação. Há males que vêm para bem, aparentemente.

Como se a narrativa não fosse dispersa o suficiente, a reta final encontra espaço para introduzir elementos sobrenaturais, com a aparição de um novo personagem. Em quinze minutos, a nova figura ganha uma introdução, desenvolvimento e conclusão, em ritmo acelerado demais, e incoerente em relação ao que se viu antes. São tantos elementos orbitando ao redor de Jessie (as pessoas imaginárias, o cachorro ameaçador, o ser sobrenatural, os flashbacks) que a sobrevivência da protagonista fica em segundo plano. Por mais que Carla Gugino forneça uma atuação convincente, ela não dissipa a impressão de ser coadjuvante de sua própria história - o título original, aliás, prefere destacar a presença do marido morto.