O blues da Guerra Fria
por Bruno CarmeloQuando o diretor e produtor Steven Spielberg decide fazer um blockbuster sobre a Guerra Fria, pode-se esperar uma enésima produção enaltecendo a coragem americana diante do perigo vermelho. Felizmente, Ponte dos Espiões está distante da euforia militarista. Em primeiro lugar, este é um filme didático: letreiros e personagens explicam de modo simplificado as principais características do embate entre os Estados Unidos e a União Soviética, para que nenhum espectador se sinta deslocado. Spielberg tem clara preocupação em dialogar com um público amplo.
Por esta porta de entrada escolar, o filme começa a introduzir, progressivamente, noções complexas como a soberania nacional e a crise do patriotismo. No caso, a trama apresenta uma dupla ironia: quando um espião supostamente soviético é capturado nos Estados Unidos e outro americano é preso na URSS, um advogado sem ligações ao governo (Tom Hanks) é encarregado de efetuar a troca entre eles. Ambos os países fazem questão de repatriar seus conterrâneos, mas desprezam estes homens que foram capturados (ou seja, fracassaram em permanecer invisíveis) e provavelmente entregaram informações confidenciais ao inimigo.
É louvável o cuidado do roteiro em equilibrar os dois lados da guerra. O protagonista é americano, claro, mas sua principal característica é trabalhar contra a moral vigente no país: o advogado James Donovan recusa-se a dar uma defesa fraca a seu cliente espião, e faz o possível para inocentá-lo, como qualquer advogado deveria fazer. As altas instâncias do direito americano são vistas como parciais e corruptas (a condenação do espião, para eles, é mera formalidade), enquanto o povo é retratado como um grupo de ignorantes sedentos por sangue. “Por que vocês simplesmente não o enforcam?”, gritam as pessoas ao redor de Donovan, indignados com a defesa de um bandido.
Mas bandido bom não é bandido morto, e neste ponto Ponte dos Espiões adota um discurso político humanista e ousado. Ao invés de ter um “homem de ação” à frente da trama, o herói é um defensor dos direitos humanos e da superação dos preconceitos. A verdadeira guerra ocorre dentro dos Estados Unidos, entre a maioria vingativa e a minoria capaz de enxergar no inimigo um outro de si mesmo. Este discurso é facilitado pela atuação segura e agradável de Tom Hanks (muito à vontade no papel, sem arroubos de valentia) e pelo espião misterioso, criado brilhantemente por Mark Rylance. Os momentos de humor absurdo – provável contribuição dos irmãos Coen ao roteiro – servem para tornar divertidas as conversas entre Donovan e seu cliente.
Por trás da aparência sombria e dos momentos de humor, o roteiro está impregnado de melancolia diante da falência do sistema moral e judicial. Não por acaso, o clímax transforma-se de fato em um anticlímax, sem ações eletrizantes, sem grandes movimentos de câmera, apenas um gesto simples, humano e rápido, filmado em enquadramentos precisos. Quem esperar altas doses de ação pode ficar frustrado, mas os fãs de diálogos afiados e suspense estratégico terão um prato cheio.
No que diz respeito às imagens, a produção oferece um banquete farto. Cada vez mais esteta e menos naturalista, Spielberg faz o possível para extrair beleza de suas cenas: a chuva forte em um momento de perseguição, a neve caindo em câmera lenta nas ruas de Berlim, os enquadramentos cuidadosamente construídos na sala da prisão. O resultado está repleto de artifícios, de construções, mas apresenta um domínio invejável do ritmo, da intensidade dramática, da luz. O diretor de fotografia Janusz Kaminski, parceiro habitual de Spielberg, mostra-se cada vez mais apaixonado pela luz “leitosa”, pelos raios brancos que atravessam alguma fenda das janelas fechadas e delimitam o rosto dos atores. Já o trabalho sonoro é eficaz e discreto, reforçando a opção pouco sentimental do projeto.
Alguns problemas pontuais prejudicam o ritmo, como algumas cenas um pouco arrastadas no meio da trama, e a conclusão longa demais, valorizando a família e a amizade, como de costume na filmografia de Spielberg. Mas estes obstáculos não atrapalham a fruição de um projeto politicamente relevante e visualmente impecável. Acima de tudo, Ponte dos Espiões é um blockbuster cujas emoções emanam dos personagens e de seus conflitos, ao invés das estripulias dos efeitos digitais – algo cada vez mais raro em produções do gênero.